Realidade Nº 8 -Novembro de 1966
A reportagem está reproduzida no livro Realidade Revista, editado pela Realejo Livros em 2010. A Abraji agradece ao editor José Luiz Tahan pela liberação do texto para esta publicação
O jornalista Carlos Marão, co-autor do livro junto com José Hamilton Ribeiro, refere-se a esta reportagem com “ um retrato que apenas conta o estilo de vida do coronel e, sem nenhum adjetivo, mostra, até com simpatia, um homem frio, autoritário, capaz de tudo, em atitudes sempre disfarçadas por falsa generosidade. Uma matéria que mostrou. Principalmente, que o último coronel não era o último”.
Ás sete da manhã já o coronel está em seu gabinete – a varanda da casa. Como sempre, há varias pessoas ali à espera de ordem: um dos dois motoristas, alguns cabras, o secretariado da cozinha, os meninos de recado. Então o coronel começa a atender os que chegam.
Entra Maria das Flores, acompanhada de duas meninas. Vem para acertar contas:
– O movimento está bom, coronel. Já alistamos 1.500 só em Carpina. Estas duas moças também são eleitoras, uma tem 16, a outra 17 anos, mas nóis aumentamos a idade…
– Aumentou as duas pra 18, foi?
– Foi.
– Oxente, Maria, tu feiz as duas irmã ficá gêmeas…
Da cerquinha da varanda, sem entrar, mostra-se um moreno baixo, cabelo cortado rente, os olhos piscando muito:
– Baú tá liso, coronel.
O coronel levanta-se, vai até o homem, passa-lhe uma notas de mil, manda-o caminhar e, antes de voltar para sua cadeira, explica:
– Com toda a cara de bobo, esse aí já matou um. Tirei ele da cadeia.
Entrando pela porta dos fundos, uma mulher muito bem disposta supreende o coronel.
– O que cumade, já está raspando a perna do defunto? Nem bem o homem chegou céu, já vosmicê ta toda enfeitada outra veiz?
A mulher engrola umas frases, mas vai logo ao principal. Precisa viajar para Recife e quer um dinheirinho. Fala das duas filhas que na próxima eleição já vão votar. O coronel corta a conversa, diz uma brincadeira qualquer para um dos presentes, chama Zefa, a cozinheira, para trazer mais um cafezinho e depois apanha a comadre pelo braço e ai conversar lá dentro.
Há bem umas 15 pessoas na varanda, mas continua chegando gente. Todo espalhafatoso, entra Paulo Louco. Vem dar notícias de um jumento que mandou trazer de Minas e que já está a caminho, viajando de navio:
– É animal para 900 contos, mas sua produção é garantida: só mulas de onze palmos.
Ajeitando a calça, que sempre ameaça cair quando ele está de pé – por causa do cinto fora das passadeiras – reaparece o coronel. Dá com Paulo Louco e larga boas risadas. Deixa-o contar seus negócios extravagantes com mulas e jumentos, diverte-se um momento, mas logo se dá por satisfeito:
– Vai lá dentro, Paulo. Diz pra Zefa lhe arranjá di comê.
Coronel 1 O moço obedece. O coronel já outra vez acomodado na cadeira, reassume a iniciativa da conversa. Volta-se para um homem que estava a um canto sem dizer palavra, desde bem cedinho:
– Tonho, você está outra vez se enleando com um rabo de saia, num ta? Já andei sabendo disso. Deixa de molecagem, tu já é homem de ter vergonha. A cumade Maria veio queixá que você ta botando casa pra outra muié, e isso num se faiz. Vai pra casa conversar mais com a cumade Maria, e diz pra ela que tu vai largá da outra. E depois vem oceis dois aqui pra jurá na minha frente que tu vai vivê como homi direito, de uma casa só. Dessa idade, e ainda não sabe fazer as coisas…
Tonho diz que sim com a cabeça, levanta e se vai.
Vindo de dentro de casa, aparece na varanda um rapaz de 20 anos, simpático, o cabelo bem penteado e ainda respingando. Falador, discute com o coronel sobre a hora em que veio dormir e garante que não bebeu nada. Nem cerveja. Pede autorização para que um dos motoristas o leve à cidade. Logo que o carro arranca, o coronel conta:
– Esse filho duma égua é meu filho. Agora está morando aqui, porque ele é bom pra eu ditar os boletins de política.
O nome do rapaz é Reginaldo, e o coronel acha divertido o fato de haver um outro seu filho que também se chama Reginaldo. Diz que não se intromete na escolha do nome que as mulheres queiram dar aos seus filhos naturais.
– Isso é problema delas, não interfiro. Mas também não desamparo nenhum. Fala que não sabe exatamente – parece mais não querer revelar – o número de seus filhos naturais. Uns 20 ou 30.
– Todos homens. Filho meu, natural ou legítimo, só é homem. Mulher eu não tenho produção própria…
Afilhados, ele tem mais de dez mil, o que lhe rende um exército de compadres e comadres. Entre os filhos naturais, um é artista de rádio, outro foi famoso salteador em Pernambuco (agora faz parte do seu gabinete); o último tem apenas quatro meses de idade.
A conversa é interrompida por seu Severino. Ele vem dizer ao coronel que um caminhão “aquele que o senhor ajudou a comprar” – sofreu um acidente e se estragou todo. Sim, dinheiro para o conserto, e como o caminhão é o única fonte de renda da família, estava ali para pedir um eixo carda novo. Uma jovem bonita acompanha seu Severino, mas se mantém em segundo plano. O coronel quer detalhes. Pergunta se ninguém ficou machucado, quem teve a culpa do acidente, a conserva fica animada, o homem conta tudo, o coronel lamenta o que aconteceu mas no fim se desculpa:
– É cumpadre, mas eu to muito sem dinheiro, não dá pra li arrajá a peça.
Aí a moça entra em ação. Insinuante, toda promessas, chega bem pertinho do coronel. Repete a história, dramatizando bastante, dizendo-se nervosa e afirmando que tem certeza da ajuda. O coronel, a esta altura, é mais olhos do que ouvidos. Pede, por fim, que ela volte amanhã, para ela repensar no assunto. A moça diz que sim, acertam a hora, o pai e a filha se despedem. O coronel volta-se para os presentes com um riso maroto e pergunta:
– Quanto custa mesmo o diabo desse eixo?
Antes de chamar todo mundo que está na varanda para o almoço (há sempre comida para muita gente em casa) o coronel ordena a um dos empregados que reúna, às cinco horas, uma meia-dúzia de cabras bons de tiro para fazer um tiro ao alvo. Recentemente ele operou uma das vistas e agora quer treinar a mira com a outra, para ver se ainda acerta. Quer também cortar o papo do Fernando – o filho natural que já foi assaltante – pois o menino anda dizendo que joga uma laranja para cima e enche-a de bala antes que ela chegue ao chão. Diz para o empregado não se esquecer de mandar buscar o Zé Vigia – o mais famoso dos seus cabras – e se levanta em direção à copa, fazendo um movimento com a cabeça:
– Vam’bora cume.
Uma fila obediente segue o gordo coronel Chico Heráclio.
Limoeiro é uma cidade do agreste pernambucano, a faixa entre a zona da mata, açucareira, e o sertão. Cortada pelo rio Capibaribe, que nesse ponto vive seco boa parte do ano. Limoeiro tem 30 mil habitantes, bons colégios, ruas quase todas calçadas, emissora de rádio, televisão nas casas e um comércio bem desenvolvido. Tudo isso, mais o fato de estar a pouco mais de 100 quilômetros de Recife, devia fazer de Limoeiro uma cidade naturalmente anticoronelista.
Mas é aqui, nesta cidade – “que parece adiantada mas só lê 100 jornais por dia” de acordo com o amargurado jornaleiro, que o coronel Francisco Heráclito do Rego, ou simplesmente Chico Heráclio, como é mais conhecido, desenvolve ainda atividade impressionante. Ele está com 81 anos e há 60 sua vontade é lei, não só em Limoeiro, mas em municípios vizinhos, onde também tem terras e votos. Seu raio de ação atinge 50 mil pessoas. Todas conhecem a força do coronel. E a respeitam. Através do tempo a riqueza da família de Heráclio só tem sido aumentada: é dona das melhores fazendas, da indústria nascente – principalmente da de tecidos de algodão e óleos vegetais – do melhor gado. Isso significa força política, controle sobre a Prefeitura, a Câmara, a Cooperativa, e todos os cargos federais e estaduais da região, como a Polícia, por exemplo.
Pesoalmente, o coronel Chico Heráclio tem 13 fazendas e dois engenhos. A maior propriedade fica no sertão e tem quase 30 mil alqueires: a mais famosa, e melhor, é a da Varjadas, muito ligada à sua fama. Ele é o Senhor Varjadas.
Coronel 3 O coronel agora está almoçando. A mesa é simples, em atenção à sua dieta de homem cuidadoso com a saúde. Nada de muita gordura e coisa picante. Carne cozida, arroz, farinha, feijão verde, queijo assado, cuscuz de milho, banana assada, e uma variedade de legumes cozidos: macaxera, jerimum, cará, inhame, chuchu, batata doce. Fruta caseira de sobremesa. E café. Bebida nunca. A mesa não é muito grande, mas geralmente almoçam mais de 20 pessoas, em vários turnos. Quem estiver na casa do coronel em hora de refeição só não come se não quiser.
A BONDADE É COMO O TERRORISMO: UMA TÁTICA
Bem almoçado, o coronel volta à varanda. Outras pessoas e outros problemas o esperam. Nesta época, principalmente, sua atividade é bem maior: as eleições estão próximas e ele vai eleger, pela quinta vez, um filho deputado federal – Francisquinho. Casado três vezes, o coronel tem quatro filhos legítimos: o terceiro, José, prefere ser fazendeiro e o último tem só 13 anos. Nenhum é formado, o que para o coronel não é muito importante.
– Único diplma que dou para eles é o de deputado, e o José não tem porque não quer.
Um dos cabras, Antonio da Niquinha, ou Antonio Moleque, entra na varanda, com uma notícia que irrita o coronel. Uma tal dona Maria, que mora para os lados do Ponto Certo, vai fazer hoje um samba em homenagem a Djalma Tavares. Djalma, um produtor da Rádio Difusora de Limoeiro- estação que o coronel praticamente construiu – é hoje o adversário político mais incômodo para o Senhor das Varjadas. O nome de Djalma começou a ficar importante a partir do dia em que ele denunciou um crime de morte violento acontecido em Limoeiro. O crime envolvia a figura do juiz de Direito, que era amigo do coronel. Ao desafiar a força da família Heráclio, Djalma ganhou fama e aproveitou-a candidatando-se a deputado estadual. Era um inimigo bastante inconveniente, que além de tudo tentava buscar votos no domínio direto do coronel, prejudicando a votação do Francisquinho.
– A festa vai ser grande – diz o cabra – pois Dona Maria já matou um bacuri, três capões e um peru, e comprou bastante bebida. Até já contratou uma zabumba para a dança.
– Moleque – respondeu o coronel – esteja aqui às seis horas que nós vamos dar um pantim nessa dona Maria. Ela vai aprender a fazê festa pra cabra safado.
Pantim é a tática terrorista que o coronel usa contra os adversários: uma ameaça pesada, com fundo e possibilidade de verdade. Se a pessoa visada dobra-se só com o pantim, tudo certo. Se reage, a ação aparece – primeiro em palavras, depois em atos.
– Só mandar bater e matar é que eu não faço, garante o coronel.
Faz sim. Ele já pôs os cabras atrás de muita gente para deixar a cidade em dia ou morrer apanhando.
Faltam duas horas para o pantim de Dona Maria. São quatro agora, hora de comer novamente. Enquanto o coronel ordena a Zefa que prepare a mesa, chegam os seus dois filhos deputados. Do portãozinho de entrada da varanda, pedem a benção. Erguem a mão direita como se pudessem alcançar a mão do velho, e o saúdam. De sua cadeira ele responde vagamente com a cabeça, e só depois desse gesto eles entram. O maior respeito. Mesmo Herclino, já avô, não fuma na frente do pai. Nem bebe.
– Filho meu só é de maior quando eu morrer – explica o coronel.
Durante o lanche, a conversa é só eleições. Deve ser removido um praça de Limoeiro que anda com minhoca na cabeça. É preciso dar um aperto no prefeito de Cumaru que anda meio mole. Comenta-se a volta da cédula individual, coisa muito boa, mais fácil para o matuto votar.
Depois do lanche, e antes do tiro ao alvo, o coronel dá um giro na cidade para uns expedientes. Vai à Prefeitura apanhar uns selos – todas as taxas municipais de Limoeiro são cobradas através de um selo com a sua efígie, – passa na Cooperativa para ver um livro de anotações políticas (o diretor-presidente foi muito tempo seu primeiro-ministro); acerta detalhes com dona Isaura sobre alistamento de eleitores (ela é funcionária municipal mas não precisa ir à Prefeitura; está comissionada no gabinete do coronel); finalmente abre crédito numa farmácia e num empório para um compadre que está em dificuldade. Em nenhum lugar o coronel desce do carro. Todos vêm até ele, que não conversa muito. Dá o recado que quer, e ordena ao motorista:
– S’imbora, Mané.
Cumprimenta pelo nome a maioria das pessoas, e só pára para conversar se o sujeito é um contra. Desbocado e direto, não manda ninguém dizer – ele mesmo diz. As crianças o reconhecem no carro e gritam:
– Olha o coronel Chico.
Ele responde:
– Sai pra lá, simbute!
Se vê por ali uma moça bonita, novinha, manda o motorista dar várias voltas no quarteirão:
– Revólver, automóvel e mulher, pra mim só zero quilômetro.
Nas campanhas eleitorais a oposição explora bastante seus casos com moças, mas ele até gosta que falem disso.
Da cidade vai direto para o exercício de tiro. Fica contente com a pontaria e acha os cabras muito destreinados.
– É que hoje não precisam mais disso- diz.
– Não é isso não – replica Fernando – traz um rifle por senhor ver.
E chega a hora do pantim. Com Antonio Moleque de cara amarrada, o coronel toca para a casa onde vai haver a festa para o candidato da oposição. Manda chamar dona Maria, e começa macio:
– Então, cumade, a festa vai ser boa, não vai? Vosmicê já feiz muita despesa, não foi?
Dona Maria diz que sim, e cai na armadilha. O coronel destempera, junta gente, arma um caso:
– Quando é pra emprestar dinheiro, ou avalizar letra, é comigo que vocês vão, não é? Na hora do aperto, o arrimo é lá em casa, não é? Pra depois fazê festa pra cabra safado, prum sujetio que quando entra numa casa tira o respeito da família, e faiz todo mundo ficá igual a ele, passando ruge e batom na cara, não é?
O destempero verbal prossegue, e, na beira do escândalo, vem o pantim:
– Olhe, cumade, vosmicê qué fazê festa, faiz. Mas se aquele cabra vier aqui eu mando um dos meus meninos acabar esse forró a tiro. Não é, Muleque?
O coronel vai embora, fica a interrogação: será que ele manda mesmo? Homem pra isso ele tem; coragem também. Enquanto se discute se o coronel manda ou não. Sempre surge a voz do bom senso dizendo que, por via das dúvidas, o melhor é avisar seu Djalma para não vir dessa vez, não convém arriscar. Desse momento em diante a festa esfria, perde o sentido. O desânimo chega a outras pessoas que também já estavam se organizando para dar reuniões com o homem da rádio.
– E eu mandava gente dar tiro nas festas. Mandava nada, é só pantim – fala o coronel.
– Já mandou muitas vezes – diz a oposição – e bem podia mandar mais uma.
Entre sete e oito o coronel vai dormir. Na rede, e de camisola. Sua casa de homem solteiro, onde há sempre estranhamente uma ou duas mocinhas, é grande, simples e mal arrumada. Não tem geladeira, televisão ou vitrola; o próprio rádio está enguiçado. Mas com os carros o coronel é caprichoso. Atualmente tem uma perua, um Impala, um Chrisler, um Volks. E está com idéia de comprar um helicóptero – se não for muito caro – para poder mais facilmente visitar o seu império de bois e de votos. Ele não conhece o Rio, nem São Paulo, nem mesmo João Pessoa. Certa vez um candidato a senador – para obter seu apoio eleitoral – ofereceu-lhe a suplência na chapa. O coronel foi eleito mas jamais apareceu em Brasília.
– É muito longe, e o povo lá só vive de protocolo…
Não teve escola. Quando o pai matriculou-o no colégio, em Recife, houve uma epidemia e ele foi levado de volta para a fazenda, para nunca mais estudar. Exercitou, entretanto, a capacidade de dizer as coisas. E diz realmente o que quer – nas seções livres da imprensa ou em boletins – com bastante clareza, na sua linguagem de matuto e num português bem livre. Suas poucas letras foram postas muitas vezes em causa, nas lutas políticas. Certo governador do Estado, militar, que além de compadre havia contado com seu apoio, desentendeu-se com ele e declarou aos jornais que ia pedir a cassação do seu título de eleitor, por analfabetismo. O coronel não deixou por menos: em carta aberta ao Diário de Pernambuco contou certas coisas do compadre e terminou assim: “Devo acrescentar que a minha pouca ilustração não chega ao ponto de deixar de avalizar letras e promissórias para muitos doutores, e até para marechais…”
– Fizeram-me prefeito em 1922 e nunca mais eu me livrei da política – lembra o coronel.
CRIMINOSO TEM HONRA, ASSASSINO NÃO PRESTA
Nunca. também, perdeu eleição para a Prefeitura de sua cidade. E mesmo agora, quando dois municípios foram desmembrados de Limoeiro, ele mantém a hegemonia, elegendo dois prefeitos. A única vez que o eleitorado driblou-o foi nas eleições presidenciais de 1960. O coronel ficou com o general Lott o povo votou em Jânio Quadros.
– Sò mesmo aquele cabra arretado pra me quebrar a invencibilidade – diz ele hoje, já sem mágoa.
Faz campanha o ano inteiro. Em agosto deste ano, entre Limoeiro, Carpina e municípios mais próximos, já tinha alistado quatro mil novos eleitores. Entre as despesas que paga para o novo eleitor – meia dúzia de retratos, um lanche, a passagem – está o registro de nascimento. Dona Isaura, do seu gabinete, conta que isso é comum por lá. A criançada vai nascendo e só se registra quando chega a hora de votar. Um pelo outro, cada título fica em quatro mil cruzeiros. E o coronel já tinha desembolsado com eles, até agosto, para a próxima eleição, 16 milhões. Fora outros favores, pois distribui máquinas de costura, monta loja para um, bomba de gasolina para outro, empresta vaca com cria para se usar o leite, arranja mula para quem está precisando de montaria, dá casa de graça para morar. E se gaba de nunca ter cobrado juros do dinheiro que empresta. Mas capitaliza tudo, e não só politicamente. Muita pequena propriedade ele adquiriu por bom preço, estando atento à menor dificuldade do matuto proprietário que estivesse pendurado com ele. Chegou algumas vezes a promover essa dificuldade, para depois salvar o matuto com a compra da terra.
Sua proteção aos perseguidos pela Polícia é famosa. Recebe cartas de vários lugares, até de autoridades, com pedidos para esconder e defender criminosos. Quando aparece alguém com esse problema, ele quer saber do caso com detalhes, implicações, conseqüências. Convencido que o homem é apenas um criminoso, e não um assassino, manda-o para uma das fazendas, enquanto um advogado, por sua conta, cuida do caso. Para ele a diferença entre criminoso e assassino é fundamental:
– Criminoso mata numa briga, por questões de honra ou em legítima defesa, onde também podia ter morrido. Assassino mata por perversidade ou para roubar. Esse não presta.
Acompanha o processo até a absolvição. Diz que não tem importância se o juiz é ou não seu amigo:
– Meu negócio é com as testemunhas e os jurados. O juiz sendo honesto já está bom.
Geralmente, cada homem que ele protege de perseguição da Polícia, torna-se um amigo reconhecido – um cabra. Mas, mesmo sem ter tido problema com a Polícia, há uma porção de gente vivendo em redor do coronel, ou por não encontrar emprego, ou por gostar mesmo daquele ambiente que, afinal, sempre rende alguma coisa.
Zé Vigia, hoje tocando a fazendinha que o coronel lhe deu de presente, foi o mais famoso cabra de Chico Heráclio. Uma vez se ofereceu para atirar num governador, que estava apertando muito o seu padrinho. Zé Vigia não senta na frente do coronel. Considera isso grande desrespeito. O velho tem orgulho dele, gosta de contar suas bravuras. E quando alguém pergunta:
– Mas coronel, o Zé Vigia, assim tão simpático e tão manso, tem mesmo coragem de atirar num homem?
– Coragem não, menino. Tem é costume…
A frase é mais de piada do que de verdade, corrige o coronel:
– Aqui nunca se matou ninguém.
Em Limoeiro, ninguém é neutro diante da figura do coronel. Ou é seu beato – nome daqueles que o seguem – ou o odeia, e neste caso o mais prudente é não tocar no assunto. O coronel é impiedoso com os adversários e seu maior prazer é desmoralizá-los junto ao eleitorado. Para isso usa boletins, assinados a maioria, anônimos outros.
– Aqueles que eu não tenho certeza, não ponho o nome, diz ele.
A linguagem dos boletins é a mais direta possível, alguns com acusações e ofensas violentíssimas. O coronel paga bom dinheiro para quem vai contar que um político contra está envolvido com uma das coisas para as quais tem verdadeira fixação: ser homossexual, marido traído, ou deflorador. E se ninguém aparece com um caso desse tipo, cria o boato. A partir daí inicia uma enxurrada de boletins, a cada dia mais violentos, que expõem o adversário às piores situações. Não poupa ninguém. Um seu sobrinho, industrial, em certa época liderou a oposição em Limoeiro. O coronel em boletim, chegou a dizer que aquele sobrinho havia nascido num período em que o pai, viajando a negócio, tinha ficado dois anos fora de casa. Quando da campanha de Arrais, que o coronel apoiou, uma parcela do clero pernambucano fez restrições ao candidato, através de pregação na igreja. Ele arranjou – e contou em boletim – defloramento para todos os padres que contra-indicaram seu candidato nos municípios onde tinha influência política.
Usa o boletim também em seu favor, encomendando-os a trovadores e poetas de feira. E não raro faz ligar à sua figura a imagem do padre Cícero, ainda muito venerado na região. Numa mensagem do além, o Santo de Juazeiro aparece recomendando os candidatos do coronel e lançando sobre os adversários as piores ameças: “ Quando chegar na porta esses camaradas, para você votar no partido deles, pode bater a porta porque é Lúcifer. Alistando ou votando neles, desse dia em diante entra a infelicidade na tua casa, entra a praga, a miséria, a peste bubônica, a bexiga lisa, o mau vizinho, e até mesmo a ferida boba”.
Em tempo de campanha, a oposição, devidamente despersonalizada nu comitê de candidatura, faz também seus boletins atacando o coronel. Então conta os seus inúmeros casos com mocinhas, fala de sua violência e despotismo e ironiza os seus excessos de velho. Como neste trecho de um longo ABC: “No tempo que Agamenon/ era governador do Estado/ Sò se ouvia o som/ de sua voz estouvado/ Jamais irei às Varjadas/ continuando o assunto/ porque em cada passada/ eu pisarei num defunto”.
O coronel Chico Heráclio reconhece que os tempos, hoje, não estão mais favoráveis aos chefes políticos do interior. Lembra-se de 1951, na eleição para a Prefeitura de Limoeiro, em quase 11 mil eleitores a oposição não alcançou 5% da votação. Em 1952, o candidato a governador adversário só conseguiu 47 votos no município. O voto, então, já era secreto, mas conta-se que a coisa já funcionava assim: o coronel dava toda a assistência ao eleitor. E lhe entregava, na boca da urna, o envelope com as cédulas, tudo prontinho. Ás vezes o matuto perguntava se podia ver o nome dos candidatos. O coronel respondia:
– Pode não, oxente. Não sabe que o voto é secreto?
O coronelismo em Pernambuco estava então no seu auge. E não era só em Limoeiro.
Em Serraria – quase divisa com o Ceará – o coronel Chico Romão entendeu de por para fora o Juiz de Direito da cidade. Sua força junto ao Governo, no entretanto, não valia muito no caso, pois juiz é inamovível. Chico Romão resolveu usar seus próprios meios: proibiu toda a cidade, inclusive bares e empórios, de fornecer água ou comida ao juiz. Seu controle sobre a população era tão grande que o juiz não teve outra saída – foi embora. Com um adversário político, que depois viria matá-lo a tiros, Chico Romão fez coisa parecida: comprava todas as casas onde ele fosse morar, e o despejava em seguida. O homem acabou se mudando para uma cidade vizinha, Salgueiro, onde afinal se deu o crime.
Zé Abílio, coronel de Bom Conselho, conseguiu o cargo de inspetor do Instituto do Açúcar e do Álcool numa terra que não tinha um só pé de cana:
– Se passar algum caminhão carregado de açúcar por aqui – dizia – eu inspeciono ele.
Até 1962, nenhum coronel tinha sido processado por assassinato, o que se ocorreria com Chico Romão, pouco antes de sua morte. O próprio Zé Abílio passou um susto certa vez, acusado da morte de dois cabras em plena rua, mas não chegou nem a ser pronunciado. E continuou batizando a casando, em Bom Conselho, apesar da opinião do monsenhor Damásio, vigário da paróquia:
– Abre-se o Código Penal ao acaso. Em qualquer página que cair, ele pode ser enquadrado em todos os artigos.
O domínio dos coronéis era intocável. Criminoso que conseguisse asilo de um deles Lampião e muitos cangaceiros haviam usado essa proteção, no seu tempo – estava salvo, não era mais procurado pela Polícia. Em compensação, quem caísse em desgraça, não tinha garantia nem com a Polícia inteira ao seu lado. Conta-se que um coronel chamou um dos cabras e lhe perguntou:
– Você conhece o padre Olavo?
– Conheço não, seu coronel. Mas já estou com raiva dele.
– Não é nada disso, oxente: é só pra levar este peru para ele.
CORONELISMO PASSOU MAS OS CORONÉIS CONTINUAM
– Nesse tempo – diz o coronel Chico Heráclio – eu casava, batizava e aí existia união em Limoeiro, e todos viviam bem.
Ele se gaba de nunca ter deixado uma comissão fiscal, do Estado ou da União, mexer nos livros dos comerciantes da cidade. Em 1953 apareceu uma comissão da Secretaria da Fazenda. Foram avisar o coronel e ele, encontrando os fiscais no hotel, quando começavam a jantar, deu-lhes 24 minutos – em vez de 24 horas- para saírem da cidade. Como um deles pedisse que ao menos os deixasse comer, pois já haviam pago a diária, o coronel apanhou dinheiro do bolso e colocou na mesa para que não tivessem prejuízo. Só que a janta tinha de ser noutro município.
Segundo jornais da época, Chico Heráclio foi um dos homens mais fortes de seu partido em Pernambuco. Um vereador de Goitá, cidade em que o coronel também agia, escreveu um ABC inteiro para dar notícia de seu prestígio: “O coronel vai eleger/ o governo do Estado/ Também uns 20 prefeitos/ e mais 12 deputados/ sendo dois federais/ e os outros dez do Estado”.
Chegou-se a propor, nesse tempo – e houve até reuniões preliminares- a formação de um pacto de coronéis pernambucanos para escolha de um candidato da área de domínio de cada um. Seria uma reedição do famoso Um por todos, todos por um que os coronéis do Ceará, inspirados pelo padre Cícero de Juazeiro, haviam firmado em 1911.
– Mais aí veio aquele governador amarelo – diz Chico Heráclio – e então em cumi fogo.
Refere-se a Etelvino Lins, a quem havia dado grande votação em Limoeiro. Os dois se desentenderam e o governador passou a apoiar o maior adversário do coronel em toda sua zona de influência. Depois, substituiu todos os funcionários estaduais – da Polícia às coletorias – que tradicionalmente eram indicados ou removidos pelo coronel. E nomeou delegados e praças com orientação de pisar no calo do Senhor das Varjadas e de sua gente. Para Limoeiro, foi nomeado como delegado um oficial da Polícia, coronel Higino, que tinha atuado nas volantes contra Lampião.
– O tratamento que eles me davam – diz o coronel Chico – era o mesmo dos cangaceiros. Cercavam minha casa, desfizeram comícios e até planejaram minha morte. Mas eu não amoleci. Numa eleição mandaram para cá 200 soldados, mas eu tinha mais cabras do que isso.
Etelvino Lins ficou apenas dois anos no governo. Substitui-o o general Cordeiro de Farias e a paz voltou aos domínios do velho chefe. Sob o governo de Cid Sampaio, a coisa não andou boa para o coronel, até que chegou a campanha de Arrais. Como a maioria dos coronéis, Chico Heráclio apoiou, por obediência partidária, o candidato da esquerda. Durante a campanha o coronel gritava:
– Potoca esse negócio de que o dr. Miguel Arrais é comunista. Em Pernambuco basta um homem ser de bem, preocupar-se com os pobres, para ser chamado de comunista.
Eleito Arrais, o coronel viu-se novamente de cima. Mas por pouco tempo. Logo que a movimentação dos camponeses por reforma agrária, salário mínimo, férias, estabilidade começou a beirar seus domínios, o coronel virou uma fera. E ficou mais irritado ainda quando se certificou que o governo, dessa vez, não estaria do seu lado. Partiu violentamente para os boletins – “essa liga camponesa é a vergonha do Brasil” – e dispôs-se a tudo, como nos seus melhores tempos. Mas o pesadelo passou. Com a revolução subiu ao governo um seu amigo, vizinho de fazendas e velho companheiro de lutas políticas, o governador Paulo Guerra. Hoje o coronel entra no Palácio do Governo a qualquer hora, sem avisar. E quanto ao futuro governador – Nilo Coelho – deposita nele as maiores esperanças, pois além de terem pertencido ao mesmo partido, Nilo é filho de um grande coronel do sertão, o Coronel Quelê.
Mas mesmo com tudo isso, Chico Heráclio sentiu perder um pouco o pé. Nesse meio tempo, veio a adoção do retrato no título de eleitor, que acabou com o “eleitor mais barato e mais obediente, o defunto”, como dizia o coronel Zé Abílio. E Limoeiro perdeu, entre as eleições de 1955 e de 1960, 2.500 eleitores. Para Chico Heráclio foi um desastre. Ele, que sempre garantia a eleição de três deputados estaduais em sua área, teve uma surpresa: dos três indicados, um não foi eleito por 200 votos.
– E sabe logo quem? Pergunta o coronel – logo o Francisquinho, meu filho. Isso não podia ficar assim, e o recurso foi comprar o resultado das urnas impugnadas. O menino acabou tendo voto até no Alto São Francisco. Agora estou mais cuidadoso, só mando votar é nos meninos mesmo…
Nenhum coronel deixa sucessor – afirma Marcos Villaça, filho do ex-primeiro- ministro do coronel Chico Heráclio e autor de um livro importante sobre o coronelismo em Pernambuco.
Mas o velho Senhor das Varjadas acredita que seu filho Francisquinho, o deputado estadual, reúne muitas condições para sucedê-lo no posto; “ quando padre Cícero me chamar”. Os estudiosos do problema, porém, acham que o tempo dos coronéis já passou, ainda que dois de seus pilares ainda estejam de pé- o latifúndio e as relações servir de trabalho. O poder original de um coronel, depois de sua morte, reparte-se entre vários pequenos líderes e nenhum deles – por não haver mais aquele isolamento de uma estrutura fechada – consegue a hegemonia total sobre os outros.
Nada disso preocupa o deputado Francisquinho Heráclio. Por via das dúvidas, ele mora na Fazenda das Varjadas, onde seu pai começou. Algumas das suas façanhas já estão ficando conhecidas. Como esta: em março deste ano corria animado o baile no clube de Limoeiro. Um dos filhos do Francisquinho dança com a namorada. Lá pelas duas da madrugada, um gaiato resolve perturbar o romance e dirige uma gracinha à pequena. A reação é instantânea; o rapaz vai de bofetão sobre o engraçadinho, que topa a briga. Vem mais gente, arma-se o rolo, acaba o baile. Os soldados de plantão no clube põem panos quentes, mas o delegado e o sargento, postos em brio, querem mostrar independência e levam preso o filho do deputado. Vão acordar Francisquinho em Varjadas e ele chega à delegacia às quatro horas. Vai direto ao delegado:
– Escuta, cabra, você tocou no menino?
– Não, isso eu garanto.
– Então escapou de morrer. Agora manda abrir a cela.
– Já dei ordem para os praças soltarem-no às cinco horas. É só esperar um pouquinho.
– Eu disse agora, capitão. Já!
– O delegado não discute. Chama um praça e ordena:
– Solta o moço.
– Eu não disse – grita o deputado- para soltar o meu filho. Eu disse abrir a cela, e isso significa: soltar todo mundo…
Abre-se a prisão. Todos os presos são libertados. No dia seguinte, o delegado e seu sargento são recolhidos para Recife: 30 dias de cadeia cada um.
Quando contam o caso, o sorriso de Francisquinho faz lembrar o pai.
Chico Heráclio pode até não ser o último dos coronéis do Nordeste.