SOBRE
O PROJETO
DORRIT
HARAZIM
JOSÉ
HAMILTON
ROSENTAL
CALMON
JOEL
SILVEIRA
José Hamilton Ribeiro

O olhar do repórter

Aos 89 anos, ainda sente vontade de ir atrás de notícia. "Quando acontece algo muito importante, eu penso que podia estar lá".

SOBRE José Hamilton Ribeiro

José Hamilton Ribeiro, primeiro homenageado da Abraji, fala sobre sua paixão pela reportagem e defende a imparcialidade no jornalismo.

texto e vídeo Elvira Lobato / edição Maiá Menezes

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José Hamilton Ribeiro é o jornalista que mais acumulou prêmios Esso, considerado o Pulitzer brasileiro. Foram sete no total, quatro deles na categoria de informação científica. Por isso, soa espantosa sua afirmação de que repórter “não sabe nada” e que até o final de sua extensa e extraordinária carreira dependeu de fontes que lhe abrissem a mente e lhe apontassem caminhos.  

Quando me chamavam pra fazer uma reportagem sobre determinado assunto, por dentro eu ficava arrasado. Como vou escrever sobre isto? Como vou entender as coisas que estão falando? Eram coisas que um professor de universidade sabe. Eu tomava um banho de ignorância. E de humildade”. 

Aos 89 anos, ainda sente vontade de ir atrás de notícia. “Quando acontece algo muito importante, eu penso que podia estar lá”, confidenciou, em entrevista à Abraji. Sua alma de repórter, segundo ele próprio, ainda o assombra.  Ele se aposentou em novembro de 2021, quando saiu do Globo Rural, e vive em sua fazenda em Uberaba, no Triângulo Mineiro, cercado por árvores e passarinhos.  

José Hamilton escreveu com maestria sobre temas dificílimos, como transplantes de órgãos. Dois de seus prêmios Esso foram sobre este assunto – uma reportagem sobre transplante de rim e outra sobre transplante de coração – o que exigiu dele um mergulho total no universo da medicina. Passava semanas dentro de hospitais, assistia a cirurgias dentro dos centros cirúrgicos, colecionava horas de conversas com especialistas para entender o assunto e escrever com simplicidade. 

Um exemplo desta habilidade está na reportagem sobre transplante de rim, que lhe deu o primeiro Prêmio Esso individual, em 1967, pela revista Realidade.  Qualquer leitor consegue entender o que é nefrite após ler o texto.  Eis como explicou o que vem a ser duto torácico: 

Há três grandes encanamentos de líquidos no corpo humano – um leva o sangue arterial , são as artérias; outro leva o sangue venoso, são as veias; o terceiro transporta a linfa, são os vasos linfáticos. O duto torácico é o maior vaso linfático do organismo”.  Mais simples, impossível.

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Já era ícone do jornalismo quando subiu ao palco da Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro, em outubro de 2005, para ser o primeiro homenageado da recém-criada Abraji. Chorou de emoção, e grande parte da plateia chorou com ele. Discursou com a humildade de sempre. Infelizmente, não há registro daquele momento, porque a sessão não foi filmada. 

Ele nasceu em agosto (mês do cachorro louco, como costuma dizer) de 1935, numa pequena cidade do interior de São Paulo, Santa Rosa do Viterbo. O pai era funcionário público municipal e produtor rural. A mãe cuidava da casa e dos nove filhos. Deixou o interior ainda adolescente, para continuar os estudos em São Paulo. Aos 19 anos arrumou emprego como repórter no extinto jornal O Tempo, fundado por jornalistas egressos da Folha de São Paulo. Dois anos depois, viu um anúncio na Folha oferecendo vaga de repórter.  Logo estava no primeiro time do jornal. 

Foi repórter por mais de seis décadas. Sua reportagem mais famosa foi sobre a Guerra do Vietnã. Foi vítima da explosão de uma mina que destruiu parte de sua perna esquerda. Daquela aventura, resultaram dois textos memoráveis, publicados pela Realidade, em 1968:  “Eu Estive na Guerra”, onde descreveu o acidente, e “Guerra é Assim” , apurada antes da explosão,  que contou a vida cotidiana em um país em guerra. O fio condutor dessa reportagem é uma recém-nascida, prematura, com pouco mais de 1kg, que foi rejeitada pela mãe. A pele branca e os olhos claros evidenciavam que o pai era um soldado norte-americano. O texto é pincelado com boletins sobre o estado de saúde da bebê, revelando o quanto o repórter se envolveu emocionalmente com aquela situação.

© National Archives LCPL S.M, Leighty – Creative Commons

Na reportagem sobre o acidente, José Hamilton revive as sensações do momento da explosão, quando percebeu que tinha perdido pedaço de uma perna.

“Para não cair, rodopiava sobre mim mesmo, em círculos e aos saltos. Instintivamente, levei as duas mãos para ‘acalmar’ a minha perna esquerda, e foi então que a vi aos pedaços. O sangue brotava como de torneiras. Depois do joelho, a perna se abria em tiras, e um pedaço longo de pele, retorcido, estava no chão. Olhei em volta e não achei meu pé. Fiz um balanço rápido da situação. Senti a cabeça muito quente e um fio de sangue no rosto. A perna direita, empapada de  sangue. Não senti absolutamente nenhuma dor. O que mais incomodava era o incrível retesamento dos músculos da perna esquerda.”.

Duas características são evidentes no trabalho dele: o bom humor e o fascínio pelo ser humano. Certa vez lhe perguntaram em um programa de auditório se era mais difícil ser repórter com uma perna só do que com duas (ele usa uma prótese na perna danificada). Ele respondeu: “É mais difícil do que com duas, mas é mais fácil do que com quatro”.

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Coronel não morre

Zé Hamilton observou os personagens de suas histórias com um olhar difícil de ser definido. À medida em que mergulhava nos temas, desenvolvia também uma paixão pelos personagens -mesmo controvertidos ou grotescos- que tivessem um lado positivo, uma certa grandeza.  

Em 1966, às vésperas de uma eleição, foi ao agreste pernambucano fazer o perfil de Chico Heráclio, o mandachuva da região de Limoeiro e símbolo do coronelismo político do Nordeste. A reportagem se chamou “Coronel não morre”, e é a preferida do repórter até hoje. Ele conseguiu a proeza de ficar hospedado na casa do coronel, e assim o observou em tempo integral. Descreveu a rotina dele na lida com jagunços, na compra de votos e na manipulação dos eleitores humildes, mas também registrou a face pitoresca do personagem.

O texto começa com uma descrição de um crime eleitoral, sem que o repórter use a palavra denúncia ou crime.  “São sete horas da manhã. O coronel está na varanda da casa e começa a atender os que chegam. Entra uma mulher com duas meninas. Ela informa que as duas -uma de 16 e outra de 17 anos – iriam votar porque ela tinha alterado as idades delas para 18 anos. O coronel respondeu:  “Oxente!. Maria, tu feiz as duas irmã ficá gêmeas”.  As falas do coronel são munição suficiente contra ele.

Zé Hamilton atuou na imprensa escrita de 1954 a 1982. Saiu da Folha de S Paulo em 1962, para trabalhar na revista Quatro Rodas, do Grupo Abril, onde ganhou dois prêmios Esso por trabalhos em equipe.  De 1966 a 1972, esteve na revista Realidade, que adotou o estilo de jornalismo literário e de apurações cuidadosas.

O país vivia o começo da ditadura militar e a revista abriu espaços para temas relacionados ao cidadão comum. Ele empregou-se numa fábrica para registrar a vida difícil dos trabalhadores. Retratou o analfabetismo através da história do pedreiro João de Souza, na reportagem “Eu sou João, homem sem leitura”. “Trabalhar eu comecei desde novo, desde pequeno”, dizia o texto, que foi escrito na primeira pessoa e no linguajar do entrevistado.

De 1973 a 75, ele integrou a equipe da revista Veja, que na ocasião também era do Grupo Abril. Depois disso, deixou a capital paulista e trabalhou em jornais no interior de São Paulo. Seu sétimo  prêmio Esso foi conquistado no jornal “Dia e Noite”, de São José do Rio Preto, em 1977, com uma reportagem sobre transplante de coração.

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Brasil Rural

É natural que as novas gerações de jornalistas associem a imagem de José Hamilton ao Globo Rural. Afinal, ele trabalhou lá por quatro décadas: de 1981 a 2021. Suas reportagens na TV continuaram refletindo sua curiosidade e seu encantamento com o ser humano. Numa entrevista ao jornal da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), em 2008, Hamilton explicou sua visão sobre jornalismo rural:

-“A pauta de um programa rural deve ser a extensão da alma do homem do campo. A extensão de sua alma não é menor do que a daquela que mora na cidade. Suspeito que seja o contrário. A alma do homem do campo é mais ampla, pois tem uma relação mais profunda com a natureza e seus fenômenos, sabe apreciar o raio, o vento, esperar a chuva e conviver com a estiagem. Além da técnica, da política e dos números, tem também tradições culturais, diversão, comida, viola, criança, cabrocha, ambiente, sonhos, lendas, ecologia (…)”.

Hamilton, na conversa com a Abraji em sua fazenda, disse que seu trabalho retratou sobretudo a realidade rural do Sudeste e do Centro-Oeste e que gostaria de ter feito mais reportagens na Amazônia.  “Minha grande descoberta pessoal foi o Pantanal. Fiquei encantado quando o conheci. Fiz várias coisas lá e várias ficaram por fazer. O Brasil tem várias realidades interessantíssimas, como a Amazônia e o Nordeste. O jornalista que se dedicar, terá um campo sem fim”.

Não senti absolutamente nenhuma dor. O que mais incomodava era o incrível retesamento dos músculos da perda esquerda.
Não senti absolutamente nenhuma dor. O que mais incomodava era o incrível retesamento dos músculos da perda esquerda.
José Hamilton Ribeiro
ENTREVISTA

A seguir, os principais trechos da entrevista à Abraji:

 

Cai um avião, e o menino Zé Hamilton descobre a notícia

 

Abraji: Você nasceu em 1935, em Santa Rosa do Viterbo, no interior de São Paulo. Imagino que não tinha acesso a jornal em casa.

Zé Hamilton: não tinha.

 

Abraji: O que fez despertar em você a vontade de ser jornalista?

Zé Hamilton: Eu devia ter menos de 10 anos. Caiu um avião “teco-teco” perto da cidade. Cair avião é notícia até hoje. Imagina naquela época, numa pequena cidade, quase uma vila. A meninada ficou alvoraçada, ficou maluca mesmo. Queria ver o avião caído, ver como o piloto estava, se estava falando e o que podia contar. A meninada correu pra ver. E eu fui junto. Eu tinha uma infecção na perna, e andava de muleta. Uma muleta caipira. Um pedaço de pau. Eu apoiava a perna ferida, magoada, no pedaço de pau e tocava a vida com a outra.

 

Abraji: Você conversou com o piloto?

Zé Hamilton: sim.

 

Abraji: Naquele momento, você ficou encantado com a notícia?

Zé Hamilton: Exatamente. Naquele momento, ficou claro para mim que não adianta ver a notícia de longe. Tem de estar perto.

 

Abraji: Como se preparou para se tornar jornalista? Começou a ler livros? Houve esse movimento de sua parte?

Zé Hamilton: Aí entra uma figura, uma tia, que tinha a única livraria da cidade. Eu era encantado com ela. Ela me dava livros para ler. Fiquei maravilhado com o mundo dos livros, mas não tinha ideia de trabalhar com jornalismo. Depois que ela morreu, a livraria acabou.

 

Abraji: Sua família te mandou para a cidade para estudar jornalismo?

Zé Hamilton: Só existia a faculdade de jornalismo da Cásper Líbero, de São Paulo. Era o único recurso que tinha para minha realidade de jovem do interior. Um mundo encantado onde se ensinava a ser jornalista. Que ensinava as técnicas de reportagem e de redação.

 

Abraji: Aos 20 anos foi admitido como repórter da Folha de São Paulo. Como foi seu aprendizado prático?

Zé Hamilton: Encontrei vários repórteres que me orientaram na Folha. Um deles foi o Hideo Onaga. Fiquei apaixonado por ele. Nos tornamos amigos. Era paciente comigo. Me orientava e me ensinava.

 

Abraji: Os repórteres começavam a carreira cobrindo assuntos de polícia e o dia a dia da cidade, como buracos de rua. Alguns rapidamente achavam um caminho próprio, que foi o seu caso. Você se lembra do seu comportamento como repórter naquela época? Era ansioso?

Zé Hamilton: Eu me lembro quando cheguei na redação da Folha pela primeira vez. Era de manhã, por volta das 11 horas. Fiquei olhando as pessoas. Não conhecia ninguém, claro. Pensei, puxa, se eu vier a trabalhar aqui, em vinte anos vou estar igual aquele cara lá sentado. Fiquei assustado. Tinha uma gente estranha, que trabalhava de noite e dormia de dia. (…) O repórter que se destacava logo era atraído para um cargo de chefia. Perdia o ardor e assumia responsabilidades às vezes acima da de sua capacidade naquele momento. Eu acabei resistindo. Os chefes de redação ficavam fechados no escritório. Eram cabeças muito voltadas para o fechamento do jornal.

 

Abraji: Isso não o atraiu?

Zé Hamilton: Não me atraiu. Olhava pra eles e pensava: não quero isso pra mim.

 

Abraji: Como você se preparava para as pautas? Como era seu processo de construção de uma reportagem?

Zé Hamilton: A primeira parte da tarefa era fazer uma pesquisa inicial para me colocar dentro do tema, dentro da pauta. E era uma época que a gente dependia muito da chefia. Acreditávamos muito nos chefes, na orientação que nos davam, na experiência que tinham.

 

Abraji: Seus textos publicados na Realidade eram divertidos. Tinham piadas, causos. Você buscava ser engraçado de propósito ou era o seu olhar natural para as coisas?

Zé Hamilton: As reportagens da Realidade eram diferentes das de jornal, onde o repórter pega uma pauta e, às vezes, tem horas ou minutos para entregar o texto. As da Realidade eram cadenciadas, davam tempo e espaço para conversas.

 

Abraji: Você é um repórter instintivo?

Zé Hamilton: Acho que sim.

 

Abraji: Antes de começar a matéria você procurava quem sabia do assunto ou deixava para resolver as dúvidas ao longo do caminho? Sua reportagem sobre o cafezinho, publicada pela Realidade em setembro de 1966, junta dados sobre produção, preço e consumo de cafezinho no Brasil e no mundo com histórias de folclore político e até receitas de mandingas com o pó de café. A gente se pergunta como descobriu tudo aquilo numa época sem internet? Você tinha 31 anos na ocasião. Era muito curioso? Como funcionava a sua cabeça?

Zé Hamilton: Quando me mandavam fazer uma matéria determinada, eu pensava: não sei nada sobre isso. Tenho de procurar quem entende e possa me orientar a achar um caminho. Em alguns casos, era fácil encontrar essa pessoa. Eu começava uma matéria só com dúvidas e perguntas. E, de repente, encontrava uma pessoa que me dava os caminhos. Não as respostas propriamente, mas os caminhos. Já estava bom, não é? O drama do repórter diante da pauta é entender o assunto, porque geralmente o repórter é jovem.

 

Abraji: Por este raciocínio, do processo de construção da reportagem, entendemos por que repórteres que estão no mesmo local produzem matérias diferentes sobre o mesmo assunto. Depende do olhar de cada um. Você é muito observador. A observação é uma ferramenta fundamental na produção jornalística?

Zé Hamilton: Um jovem repórter não sabe nada. Ele fez uma escola mais ou menos, fez um curso universitário também mais ou menos. Na hora de trabalhar, é um mundo de desafio. Tudo é novo, diferente. Quando chega numa redação complicada e complexa como as da Folha de S Paulo, do Estado de S Paulo e do Globo, tem de escrever para gente que sabe muito mais do que ele. O repórter é um operariozinho no meio de uma indústria enorme, cheia de cobras criadas.

 

Abraji: Você se sentiu assim quando entrou numa redação de jornal pela primeira vez?

Zé Hamilton: Sim.

Abraji: Sempre tive medo na véspera da divulgação de uma matéria de denúncia. Medo de ter errado, de não ter entendido corretamente. De ter deixado um buraco na apuração.

Zé Hamilton: De ter sido injusta?

 

Abraji: De ter sido injusta. Esse medo me perseguiu a vida inteira. Construir uma reputação é muito difícil, mas destruí-la é muito rápido. A responsabilidade do repórter é grande. Você sentia isso? Como se sentia na véspera da divulgação?

Zé Hamilton: No primeiro momento, quando me chamavam pra fazer uma reportagem sobre determinado assunto, por dentro eu ficava arrasado. Como eu vou escrever sobre isto? Como vou entender as coisas que estão falando? Eram coisas que um professor de universidade sabe. Eu tomava um banho de ignorância. E de humildade.

 

Abraji: Uma vez você disse que uma das características necessárias a um bom repórter é ter a sorte de estar no lugar certo.

Zé Hamilton: Sorte de encontrar uma fonte instigante, que abra sua cabeça, indique pessoas.

 

Abraji: Não é só sorte. Tem de saber chegar na fonte certa, construir uma rede de relações. Penso que o repórter tem de ser um sedutor. Você concorda com isso?

Zé Hamilton: Concordo. Concordo. Ele tem de estabelecer uma relação de empatia, de confiança com a fonte.

 

Abraji: A fonte não é amigo do repórter, mas um tem de confiar no outro. Qual é o segredo para despertar essa confiança e construir essa rede?

Zé Hamilton: É ser verdadeiro. Não enganar. Dizer que está fazendo uma reportagem sobre um assunto do qual não entende e que está pedindo ajuda.

 

Abraji: Mesmo depois de ser famoso, falava com esta humildade, que precisava de ajuda para entender a pauta?

Zé Hamilton: Não tinha outra saída. O repórter, seja de jornal ou de televisão, pega um assunto, trabalha até entender um pouquinho para escrever. Entrega a matéria e já recebe uma pauta diferente, de outro assunto que ele também não entende. Tudo o que ele aprendeu para a pauta anterior já não serve mais. Passou!

 

Abraji: Que precaução tomava para não cometer erro, e que erro você cometeu? Ou nunca cometeu?

Zé Hamilton : Devo ter cometido muitos.

 

Abraji: Que lhe tenha marcado ou que tenha prejudicado alguém?

Zé Hamilton: Ao que me lembre, não. Naturalmente, as reportagens incomodam.

 

Abraji: Então, o jornalista deve estar preparado para sentir este incômodo de não dominar todos os assuntos. Mesmo o jornalista mais qualificado vive no fio da navalha, porque pode chegar um jovem e enxergar algo que ele não enxergou. O jornalista está sempre no fio da navalha, na corda bamba. Você acha isso?

Zé Hamilton: Sem dúvida.

 

Abraji: Vamos falar de curiosidade. Ela é a principal qualidade necessária a um bom repórter?

Zé Hamilton: E a um bom cientista.

 

Abraji: Qual a importância da curiosidade para o jornalista?

Zé Hamilton: Ela te leva a ir atrás do desconhecido.

 

Abraji: Você fez uma reportagem sobre a enxada para o Globo Rural que é reveladora de sua curiosidade. Ensinou que a enxada veio da Inglaterra, que o número que aparece impresso no metal refere-se a seu peso em libra, que produz som e embala uma dança masculina no interior de Minas (para celebrar o plantio do milho). Este equipamento singelo e arcaico virou poesia na sua reportagem. Como conseguiu aquilo?

Zé Hamilton: O repórter sempre depende da fonte.

 

Abraji: Naquele caso, você encontrou alguém encantado pela enxada que sabia aquelas coisas?

Zé Hamilton: Encontrei. Um médico de Bom Despacho (Minas Gerais) chamado José Maria Campos. Era apaixonado por enxada e continua até hoje.

 

Abraji: Como o encontrou?

Zé Hamilton: Ele é violeiro, cantador de moda de viola. Eu cheguei a ele por meio da moda de viola.

 

Abraji: Ele te sugeriu fazer uma reportagem sobre a enxada?

Zé Hamilton: Eu disse: Enxada? Quem vai querer saber de enxada? Isso não dá assunto! Ele falou: Enxada tem muita história boa! E contou sobre a dança da enxada.

 

Abraji: Quando saber que a apuração está completa? Às vezes o desafio é conseguir parar de apurar. Você mergulhou na pesquisa e se apaixonou pela enxada?

Zé Hamilton: Pelos personagens da enxada, como o Tião Campos. Ele é fazendeiro, mas também trabalhador braçal, experiente com enxada e machado. Sempre usou estes instrumentos para ganhar a vida. E é uma figura!

 

Abraji: Entre suas reportagens famosas, não há entrevistas com ministros, governadores, presidentes da República. Mas há várias sobre o universo do homem simples, do cidadão comum. O poder nunca o impressionou? Não era de ir a gabinetes?

Zé Hamilton: Sempre fui receoso com gabinetes. Sou encucado com cerimônia. Gosto da simplicidade, da coisa natural.

 

Abraji: Se te perguntassem se quer entrevistar o presidente da República ou um cidadão que descobriu uma nova raça de tatu, você iria….

Zé Hamilton: Atrás do tatu.

 

Abraji: Qual foi a maior reportagem da sua vida, a que te deu mais orgulho?

(Ele pede ajuda para a filha Ana, que acompanha a entrevista, e ela sugere que foi a cobertura da guerra do Vietnã. Mas ele a surpreende).

Zé Hamilton: Acho que foi O Coronel Não Morre (reportagem publicada pela Realidade em novembro de 1966).

 

Abraji: Por que ele te emocionou?

Zé Hamilton: Porque era um homem poderoso, aproveitador, mas que tinha grandeza também. Era violento, mas possuía qualidades que faziam dele uma autoridade local importante.

 

Abraji: Você se hospedou na casa do coronel para observá-lo em tempo integral. Lendo o texto, dá para sentir sua presença ao lado do coronel, anotando uma frase que resumia a truculência dele: “Mulher, revólver e carro têm de ser zero km”. É esta complexidade do personagem que o atraiu?

Zé Hamilton: Sim.

 

Abraji: Se você fosse encarregado de fazer o perfil de um personagem muito controvertido, como o Marcola (líder do PCC)…

Zé Hamilton: Ou o Bolsonaro?

 

Abraji: Você observaria Bolsonaro por dias, como fez com o coronel, para traçar o perfil dele? Tentaria mostrar também seu lado humano?

Zé Hamilton: Seria um desafio, heim?

 

Abraji: Você iria com uma ideia pré-concebida, recusaria a pauta ou iria de peito aberto?

Zé Hamilton: São três hipóteses. De peito aberto, eu não iria. Mas não recusaria a pauta.

 

Abraji: Pelo seu histórico, você se encanta com tudo o que é humano. Se encontrasse uma faceta atraente em Bolsonaro você a esconderia?

Zé Hamilton: Não esconderia.

 

Abraji: Queria falar sobre imparcialidade. Tem muita gente que acha que o jornalismo tem de ser imparcial. Outros, sobretudo os mais jovens, acham que é preciso defender um lado, uma causa. Qual sua opinião?

Zé Hamilton: O jornalismo não pode ser confundido com militância. O jornalista é um observador da natureza humana e ela tem momentos de brilho e de horror. Ele tem de estar aberto para ver estas coisas e dimensioná-las durante seu trabalho. Tem de conviver com estas duas realidades. Não pode pretender trabalhar apenas com anjos. A gente trabalha com o ser humano cheio de defeitos, maldades e interesses. Enfim, é preciso buscar fazer um trabalho limpo diante de uma realidade que você sabe que é impura, maldosa e voltada para interesses.

 

Abraji: Mas a gente consegue ser imparcial? Pela maneira como relatamos os fatos, pela importância que atribuímos a um fato e não a outro, a gente está sendo juiz. Então, a imparcialidade absoluta acaba não existindo. Você concorda com isso?

Zé Hamilton: Concordo. É isso mesmo.

 

Abraji: O repórter é então um observador e juiz. Isso aumenta sua responsabilidade. Tem de ser o mais correto possível.

Zé Hamilton: E ser o mais aberto e transparente possível.

 

Abraji: E fazer a melhor reportagem que conseguir fazer.

Zé Hamilton: E de coração aberto.

 

Abraji: Você está aposentado na sua fazenda, mas ainda coça aquela vontade de fazer reportagem?

Zé Hamilton: Agora não mais. Mas já coçou muito. Faz um tempo já que me conformei com a ideia de que sou um retired (risos).

 

Abraji: Quando você vê uma cena inusitada e pensa que daria uma reportagem, o que faz com esta faísca?

Zé Hamilton: Procuro instigar alguém da área a ir atrás e fazer uma pesquisa profunda.

 

Abraji: Mesmo quando a gente se aposenta, o repórter que nos habita …..

Zé Hamilton: Continua assombrando a gente. ….

 

Abraji: Que conselho você dá a um jovem jornalista?

Zé Hamilton: O jornalista tem que duvidar das versões. Ter clareza de que o que ele ouve de uma pessoa é uma versão. Se ouvir outra pessoa, terá outra versão. Para ele ter uma reportagem completa, tem de ter várias versões. E deixar claro que são versões. (…) isso seria o ideal de um jornalista, que pudesse trazer para o debate várias possibilidades, sem obrigação de fechar com uma. Porque senão seria militância política.

 

Abraji: A formação do jornalista tem uma questão extraordinária: Quanto mais você aprofunda, mais você vê que não há fundo. A formação do repórter não acaba. Você continuou aprendendo até o final da carreira?

Zé Hamilton: Sem dúvida. (O aprendizado) Não acaba.

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