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A guerra é assim

José Hamilton Ribeiro
A guerra é assim

Realidade Nº 27, junho de 1968

Reproduzimos o texto da reportagem que está no livro Realidade Revista, editado pela Realejo Livros em 2010. A Abraji agradece ao editor José Luiz Tahan pela liberação do texto para esta publicação

Em Go Vap, subúrbio a 30 km de Saigon, fica o QG do Exército sul-vietnamita. Mas não é por isso que vou passar o dia em Go Vap. Um padre brasileiro – Padre Generoso Bogo – dirige ali uma escola técnica para meninos: está há quinze anos no Vietnam, e quero falar com ele. O Padre Generoso trabalhava em Hanói, mas em 1954, quando Ho Chi Minh tomou o poder, ficou num dilema: continuar em Hanói ou emigrar para o Sul. Escolheu seguir para Saigon, com seus 450 meninos. Hoje, a escola que dirige chama-se Foyer Dom Bosco e tem 550 alunos internos.

Quando entramos em Go Vap, meu intérprete Nguyen m fez parar o carro diante de um portão:

– Olhe este cemitério, sr. Ribeiro. Não nota alguma coisa diferente?

Não, não vejo nada diferente, mas Nguyen começa a contar. No mês de janeiro, o número de enterros naquele cemitério aumentou muito. Era o vietcong, ou vici (vc) como eles dizem, agindo. Enterravam caixões e mais caixões, com choro e vela, só que dentro deles o que havia eram fuzis, balas, granadas e metralhadoras. O cemitério fica a 200 metros do depósito de munições do Exército sul-vietnamita. E, nos dias da ofensiva do Tet, o vici armou-se, abasteceu-se nas covas do cemitério, pertinho do inimigo.

Visto o cemitério, continuamos até o Colégio Dom Bosco. Como todas as escolas do país, agora também está fechado por ordem do Governo. O padre não está, mas deixou recado que volta à uma hora.

Vamos então visitar um pagode de “culto aos antepassados”. Foi construído em homenagem a uma general do século XVIII, que, segundo a tradição, virou gênio (santo) depois de morto. O interior é cheio de ouro e brocados, altares, enormes animais em porcelana. Ao fundo, no “altar-mor”, um retrato do gênio protetor. São as mulheres, principalmente, que vêm rezar. Ao entrar, sempre sem sapatos, recebem-se duas pedras lascadas e uma caixa contendo mais uma centena de varetas numeradas. O fiel ajoelha-se diante de um altar e reza, balançando a cabeça e inclinando o corpo até o chão. Terminada a prece, apanha as duas pedras e as atira ao chão. Se caírem na mesma posição – isto é, as duas de “barriga” para cima, por exemplo – é sinal de que os gênios receberam a oração como boa. Então, o fiel movimenta as varetas e as atira também ao chão, para que “mostrem o futuro”, o que se saberá conforme a posição em que caírem e seus respectivos números. Dirige-se em seguida à portaria, onde, em prateleiras, há papeizinhos correspondentes a cada vareta, e neles está escrito, em forma de provérbios e versos, o “horóscopo” de cada um, subdividido em vários setores: vida amorosa, negócios, trabalho, família, saúde. Se o horóscopo for muito negativo, o fiel volta a rezar, depois escreve seus pedidos num papel, que queima na beira do túmulo do gênio protetor. O vietnamita acredita que um pedido pode chegar ao céu só através de fumaça.

Ao meio-dia vamos almoçar no mercado de Go Vap. Nguyen usa toda a sua paciência oriental para me ensinar a comer com os pauzinhos, pois garfo não há. E conta-me que o vietcong tem uma maneira própria de usá-los. Tradicionalmente, só se usa uma de suas extremidades, tanto para levar cada porção à boca, quanto para apanhar a comida na travessa. O vici criou esta novidade: uma das extremidades do pauzinho é usada para apanhar a comida da travessa para o prato; a oura (a que seria o cabo), para levar a comida do prato à boca. Nguyen mostra como é, mas não aprova:

– É movimento demais, parece que a gente está remando.

A uma hora encontramos o Padre Generoso em seu escritório. Tem cinqüenta anos e um ar saudável. Mas está desanimado com a situação do país. Fala até em voltar ao Brasil. Acha que a população colabora com o vici.

– Isso ficou claro na última ofensiva. Sem a omissão do povo, o vietcong não podia ter feito o que fez.

O padre acha mesmo que a população do Sul deseja a paz com o vici por duas razões: a) medo do castigo; b) cansaço da guerra. Os vicis são os próprios demônios, jogados por Satanás aqui na terra, diz o padre:

– Eles são capazes de matar a sangue frio, sorrindo, enquanto enfiam a baioneta. Não são dmônios, são demoninhos, pois eu já vi vários vicis de dezesseis anos, e até um de treze. Um horror!

Suas opiniões, que ele dá até por escrito, são drásticas:

– A única solução para o Vietnam é bala. É preciso ampliar a guerra para liquidar completamente com os comunistas; U Thant é um tonto, um bonzo encapuzado, que há muito devia ter sido linchado na ONU. De Gaulle nã passa de um agente dos comunistas, como todos os que falam em paz; os americanos são fantásticos, mas estão perdendo a guerra por serem bons demais. Se, em vez de 550 mil soldados americanos, houve aqui 550 mil coreanos, a guerra já teria sido ganha. Os coreanos lutam à moda asiática, não fazem prisioneiros: quando atacam uma posição, matam todos na hora, sem perder tempo com conversa mole. Só os governos fortes impedem o avanço do comunismo. O maior erros dos EUA, aqui, foi tirar o ditador Diem do poder. Com ele, tudo ia melhor.

Nem todo o tempo do Padre Generoso Bogo no Vietnam é consumido em exercícios de rancor contra o vici. Sua missão é arranjar dinheiro para manter a escola técnica em funcionamento. Ao lado de alunos que paga, a escola salesiana de Saigon recebe também órfãos e refugiados, que estudam sem pagar. O padre fica alegre quando um brasileiro o visita e prometemos voltar no dia seguinte para almoçar.

Regressamos a Saigon, porque temos hoje uma visita ao recolhimento de órfãos da Associação de Mulheres Vietnamitas. Num amplo barracão, em caminhas coladas umas nas outras, mais de setenta crianças estão sendo tratadas. Elas perderam a família inteira na guerra. Uma, chorando numa pequena rede, me chama a atenção. É pequena demais. A diretora informa:

– Veja, tem um mês de vida, mas pesa apenas um quilo e sessenta gramas. Nós a chamamos de Ngá, que quer dizer marfim. Pela prática que temos, sabemos que o pai dela deve ser americano: veja os olhos e a cor da pele. O número de crianças assim é cada vez maior.

A pequenina é vítima indireta da guerra. Os pais não morreram. A mãe, mulher de vida irregular, aproveitou a onde de órfãos e abandonou a filha no portão da Associação. A mulher encarregada de cuidar da menininha informa que ela não aceitou alimento algum hoje. Chora muito, mas o médico disse que não tem nenhuma infecção. Há esperanças de que se salve.

No dia seguinte, antes de ir para uma entrevista com um especialista em história do Vietnam, passamos no orfanato para saber de Ngá.

– Agora está dormindo. Não passou bem a noite, mas de manhã aceitou a mamadeira. Ficou mais tranqüila.

O professor No Minh nos espera na rua, a 200 metros de sua casa. Pede desculpas, mas não pode receber-me hoje.

– Este bairro tem muito vici, sr. Ribeiro. Se eu receber um estrangeiro em minha casa, por certo virão pedir explicações e nem sempre as explicações de quem recebe um estrangeiro são aceitas por eles.

Para minha surpresa, meu intérprete Nguyen faz um convite para que o professor e eu almocemos em sua casa.

Com a manha livre, vou assistir, na praça central de Saigon, ao ato solene de entrega de medalhas aos que lutaram com bravura contra o vietcong durante a última ofensiva. Neguyen quer is comigo, mas a polícia não deixa, explicando que todos podem ver a cerimônia pela televisão. Só jornalista pode entrar.

O General Cao Ky, vice-presidente do Vietnam do Sul, homem forte do Governo e líder da linha dura militar, é quem entrega as medalhas. No alto do palanque, écharpe colorida sobressaindo sobre a camisa do uniforme militar, o bigode preto bem aparado realçado num rosto impecavelmente barbeado, seu olhar é enérgico. Mas ele mostra um sorriso satisfeito quando aponto a máquina fotográfica em sua direção. Cao não tem ainda quarenta anos, e o povo comenta ultimamente o fato de ele estar agora com sua terceira mulher, uma aeromoça. No discurso, ele fala com violência:

– Nada de paz com os comunistas. Vamos libertar o Norte.

Esta guerra em suas contradições. Cao Ky é nortista. Pham Van Dong, primeiro ministro do Norte, é sulista. E Ho Chi Minh, que é do Vietnam central, já trabalhou há muitos anos para o serviço secreto americano.

Terminada a cerimônia, reencontro Nguyen no meio do povo, conversando com outro vietnamita:

– Este meu amigo trabalhava na província, num posto de Governo. Seu irmão, um dia, trouxe-lhe um recado: o vici mandava dizer que, se ele continuasse a colaborar com os americanos, ninguém lhe garantia vida longa.

O rapaz abandonou o posto e hoje vive em Saigon, na casa de parentes. Esse é um fenômeno comum, e com isso Saigon se enche cada vez mais de problemas. Sua população hoje é de 3 milhões de habitantes. Alguns bairros são construídos sobre a água, num braço do rio Saigon. Quando baixa a maré, as casas apóiam-se diretamente sobre lama e detritos humanos. As crianças circulam naquela imundície, e esta não deixa de ser também uma imagem de guerra.

À tarde vamos visitar uma plantação de arroz. Nesta época, a colheita já terminou, e a terra virou pasto, onde búfalos comem sossegados. Há pouco gado no Vietnam, e o bufado é usado para puxar arado e fornecer leite. O vietnamita do campo trata bem dos búfalos, como membros da família.

Na volta paramos no cemitério dos bonzos. Está cheio de gente. São centenas de famílias desabrigadas pela guerra, que receberam permissão para “morar” ali até que o Governo resolva a situação.

Hoje é sábado, mas o toque de recolher torna-o um dia igual aos outros. Fica-se preso no hotel, e à noite só se podem ver os programas sem graça da televisão, ou usar o serviço de bar, que fecha às dez oras. Um americano, gigante de mais de 100 quilos, reclama, quer que o bar fique aberto. Tudo o que consegue é um litro de uísque, que sai tomando nervosamente. Lá pelas onze, dirige-se ao porteiro e diz que vai sair, que não suporta mais aquela solidão. Com paciência, o porteiro diz-lhe que não é possível, sair à rua é quase suicídio. O americano explode:

– Por que vocês não levam a frase yankees go home e nos mandam embora? Quero voltar para casa, não agüento mais este inferno! Varíola verde, a doença do dólar

Ótimo almoço deste domingo. Não foi na casa de Nguyen, mas sim na do seu sogro, típico chefe de clã vietnamita. Toda a família – várias casas, em cada uma um casal com os filhos – vive num terreno comum do tamanho de um quarteirão, sob o comando do velho patriarca. Cozinha vietnamita e uma conversa agradável, como se ali reinasse a maior paz do universo. A 4 quilômetros, entretanto, durante todo o almoço, houve guerra. Quatro aviões de bombardeio faziam evoluções no ar e depois, um de cada vez, desciam a pique atirando sobre objetivos na terra. Mas nada disso mexia com os nervos dos convidados. Bella, húngaro que veio para o Vietnam fugindo do comunismo, casou com uma vietnamita rica e pensa nunca mais deixar o país; o Professor No Mihn, o tal especialista em história do Vietnam; Mo, um engenheiro ferroviário, Nguyen e eu, além do Senhor Fauquenot, o anfitrião.

Fauquenot, 78 anos, e nome traduzido para o francês, é um velho escritor. Rico, já atuou na política, mas sua posição pró-França o afastou do Governo, após a chegada dos americanos. Sobre a situação do país, está desanimado:

– É cada vez mais claro que os americanos não podem ficar. Mas, quando forem embora, talvez aconteça uma catástrofe maior.

Bella faz uma revelação surpreendente. Numa fazenda de sua família, a 10 quilometros de onde estamos, há vicis.

– E nós pagamos regulamente todas as taxas que cobram, para viver com eles sem violência.

O engenheiro diz que numa cidade a 80 quilômetros de Saigon, o vici está tão organizado que tem até um general.

– Todos sabem quem é ele, mas ninguém diz. Ele vive como se fosse civil.

Uma particularidade da sociedade vietnamita: nem a mulher do velho Fauquenot, nem a de Nguyen, nem a do engenheiro, sentaram-se à mesa. Ficaram o tempo todo escondidas na cozinha. Uma das filhas de Fauquenot serviu os pratos, calada e discreta. Durante o almoço, No Mihn tentou fazer-me compreender em duas horas quase 5 mil anos da história vietnamita – ela começa em 2.780 a.C. Dizia-me coisas assim:

– Para conquistar-nos, primeiro é preciso entender-nos. Violência não resolve. Durante 2 mil anos a China tentou conquistar-nos. Não conseguiu, ninguém conseguirá.

Em cada quatro vietnamitas, um não quer conversa com os vici; os outros três o ajudam, ou pelo menos são indiferentes. Somos quatro vietnamitas neste almoço; nenhum de nós tem certeza se o outro não é vici. Nguyen me recorda a entrevista que temos na cidade, e nos despedimos daquela gente simpática. A entrevista é com um advogado de Saigon. Um amigo comum lhe garante que seu nome não será revelado, pois seu problema é delicado. Tem dois filhos em idade militar e, para evitar que sigam para a guerra, ele faz como todos os ricos de Saigon: suborna as autoridades militares. Mas como o advogado não é muito rico, as 50 mil piastras (mais ou menos 400 dólares) que tem que distribuir anualmente por filho isento do serviço militar lhe pesam bastante. E no fim deste ano outro filho entrará em idade militar, e sua conta será ainda maior.

A corrupção no Vietnam tem mil braços. Nem um simples papel, como um registro de nascimento, é liberado sem “algum” por fora. Um soldado da polícia ganha 3 mil piastras por mês (25 dólares ou cerca de 80 cruzeiros novos), e isso não dá absolutamente para viver em Saigon, onde um quilo de arroz – alimentação básica – custa 30 piastras (cerca de 800 cruzerios velhos). O mercado negro funciona em toda parte. Uma rua – a Ham Naghi – especializou-se em vender produtos americanos a preços mais baixos que os próprios armazéns militares. O Padre Generoso Bogo diz que o catolicismo precisou ser adaptado ao Vietnam, onde “mentir e roubar não é pecado”.

Um soldado americana jamais recebe, estando no Vietnam, menos de 300 dólares por mês (cerca de 950 cruzeiros novos) – e isso se for apenas soldado raso. Ganha mais que um general vietnamita. Tanto dinheiro serve-lhe para comprar, a qualquer preço, um pouco de felicidade nesta terra que lhe é tão estranha e hostil. Isso faz dele fonte de corrupção.

– A família vietnamita – disse-me uma mulher – está sob o fogo de três inimigos: corrupção para o pai, guerra para o filho, prostituição para a filha.

Um escritor batizou o fenômeno de “varíola verde” – doença social provocada pelo dólar fácil. A corrupção está em todos os escalões do Governo. Uma partida de remédios enviada pelo Brasil como auxílio às vítimas da guerra acabou vendida a altos preços nas farmácias de Saigon.

RECEITA ALEMÃ: DIVIDIR O DINHEIRO

Depois de passar novamente pelo orfanato para saber da pequenina Ngá – hoje está boazinha – vamos para Bien Hoa, cidade de 40 mil habitantes a 50 quilômetros de Saigon. Há dois caminhos: a estrada velha, que atravessa aldeias, e a auto-estrada. Resolvemos ir por uma e voltar pela outra.

A estrada velha é bem Vietnam: mostra duramente a pobreza do país. A região está cheia de vietcong, e as duas pontes da estrada já foram minadas várias vezes. Na segunda delas, 100 metros antes, encontramos um grupo de soldados que nós faz sinal para parar. Examinam nossos documentos e nos liberam. Mais à frente, bem no meio da ponte, havia outro grupo de soldados, que nos parou também, mas não para pedir documentos. Queriam saber quem eram aqueles soldados lá atrás: o grupo de cima da ponte estava pensando que os outros eram do vici.

Bien Hoa é cidade pobre, de muitos pescadores, e como em toda zona pobre presume-se que tenha muito vietcong. Almoçamos ali. No restaurante, antes de servirem a comida, entregam o tradicional paninho quente para a gente passar nas mãos e no rosto. Lembrando de uma recomendação da Organização Mundial de Saúde, só o uso nas mãos. O tal paninho, geralmente não-esterelizado, passando de um rosto a outro, é um dos maiores fatores de transmissão de tracoma, que é doença endêmica.

Voltamos a Saigon pela bela auto-estrada, construída pelos americanos para ligar uma de suas bases ao poro saigonês. As instalações militares tomam os dois lados da auto-estrada por mais de 10 quilômetros. Mil metros depois, começa uma grande região de bordéis. Antes, porém, há o “posto de gasolina colorida”. A gasolina comum, branca, custa em Saigon cerca de 300 cruzeiros velhos; aqui ela e azul ou vermelha, melhor, e custa pouco mais que metade da outra. Trata-se de combustível militar – azul dos veículos vietnamitas, vermelha dos americanos. Os soldados motoristas vendem, abaixo do custo, parte da gasolina do tanque de suas viaturas. Ela é retirada por sucção, com um tubo de borracha, e depois revendida em latas. O movimento no “posto da gasolina colorida” é grande o dia todo, tanto de caminhões militares que vêm deixar-se sangrar, como de automóveis que vêm abastecer. Tudo abertamente.

À noite, no hotel, um alemão vem chorar as mágoas comigo. É médico, trabalho num navio-hospital que o Governo de seu país mandou ao Vietnam para tratar de vítimas civis. Está de férias, mas sem dinheiro.

– Um absurdo, passar as férias numa cidade que fecha às 7 da noite!

Ele está impressionado é com o volume de dinheiro que os EUA empregam ali: 27 bilhões de dólares por ano, cerca de 80 milhões de dólares por dia. Em dinheiro brasileiro, isto quer dizer mais ou menos 260 bilhões velhos queimados cada 24 horas. O médico alemão explica-me sua “filosofia”:

– Se os EUA pegassem esse dinheiro e dividissem entre a população do Vietnam, não precisava matar ninguém nem desmoralizar-se internacionalmente, e o povo vietnamita enriquecido, nem pensaria em comunismo.

MOÇA NÃO FALA COM SOLDADO: SAI

Terça-feira. Com Nguyen sempre de guia, vamos visitar o pagode do bonzo Tri Quang, que se notabilizou como líder da facção budista que quer um Governo autodeterminado e independente. Na entrada do pagode, há m aviso: “ O Venerável Trich Tri Quang foi desacato e preso hoje. Às 9h30, sem nenhuma consideração, pelo Governo de Saigon”.

As paredes estão furadas de balas. Na última ofensiva, quando o incêndio arrasava as vizinhanças, o povo acorreu para lá em busca de abrigo. Na confusão, o pagode acabou recebendo fogo dos dois lados, e um velho foi morto, tomado por vici. Ao ser identificado, a surpresa: era pai de um capitão do Exército do Sul. O pagode está sempre brigando com a polícia: os bonzos recusam-se sistematicamente ao serviço militar.

Antes do almoço com um médico francês, que mora há dez anos no Vietnam, passeio despreocupado pelo centro. Como são bonitas as vietnamitas! A roupa que usam, o an-dai, é sensual, embora se componha de duas peças- uma calça comprida até o calcanhar e um casaco de gola fechada e mangas compridas. É verdade que alguns an-dais são transparentes a ponto de mostrar nitidamente as peças íntimas das moças.

As ruas centrais estão abarrotadas de barracas e quiosques, onde se pode comprar de tudo. Os quiosques de camisas bordadas são muito procurados pelos soldados americanos. O modelo mais vendido é um blusão brilhante, preto e amarelo, onde está inscrita a frase que já é quase um símbolo nesta guerra: “ Quando eu morrer, vou para o céu, porque já passei meu inferno no Vietnam”.

Durante o almoço, na varanda do Hotel Continental, o médico francês me ajuda a entender alguma coisa desta guerra. Uma delas é o motivo pelo qual os americanos são tão hostilizados pelo povo. Ele acha que o segredo está no amor. O americano – que, em geral, só serve durante doze meses, aqui – não faz mesmo questão de ser simpático, já que vai ficar tão pouco tempo, diz o médico. Ele paga, paga bem pelo amor, e acabou.

– Como isso, moça de família em Saigon não fala com americano. Não é não sai com americano: é não fala.

Depois do almoço, vou com Nguyen assistir a uma operação de “caça ao vici”, da qual soubéramos no fim da manhã. É em Ly Thai To, bairro pobre de Saigon, muito castigado pelas últimas bombas. Uma companhia de rangers sul-vietnamitas e duas companhias do Exército coreano estão agindo. A busca é espalhafatosa, casa por casa, cômodo por cômodo, armário por armário. O vici pode estar em qualquer lugar. O vaso de uma latrina é destruído a marretadas, pois pode esconder um túnel vietcong. Aproxima-se um garoto e pergunta a Nguyen se sou americano. Ele responde que não, que sou jornalista brasileiro, o menino afasta-se e volta daí a pouco com dois copos de chá gelado:

– Foi o Sr. Dong quem mandou. Tomando chá, vamos procurar este Sr. Dong para agradecer. Nguyen conversa com ele e depois, quando vamos saindo, me diz espantado:

– Sr. Ribeiro, não sei por que, mas tenho impressão de que esse Sr. Dong é um vici.

Resultado da operação militar: um rapaz preso por falta de documentos.

OS CHINESES ESTÃO COM MEDO

A manhã de hoje, quarta-feira, vai ser dedicada a uma visita a Cho Lon, o bairro chinês. Antes, entretando, visitamos a pequenina Ngá. Descobriram mais uma coisa: a mãe – mãe-solteira tomou remédio para abortar, por isso Ngá nasceu tão fraquinha. Mas está cada vez melhor.

Cho Lon é uma verdadeira cidade dentro de outra. Sua população é de 1 milhão e 200 mil habitantes, dos quais 900 mil chineses. Em vietnamita, Cho Lon quer dizer grande mercado e, na verdade, o bairro é isto. Ali se pode comprar de tudo, desde ferro-velho até peças de motor de avião, desde objetos de marfim até cachimbo de ópio – ou o próprio ópio. Em geral, os chineses são riscos, embora não pareça. Cho Lon controla 85% de todas as importações (menos as de guerra) do Vietnam; mais de 50% de todo o comércio da Saigon; e quase 80% dos bares e restaurantes. Os chineses dominam também os bancos e as máquinas de beneficiar arroz.

A população tem certa antipatia pelos chineses, pois são considerados os “tubarões” do país.

Não é cômoda a situação deles. O dono de uma casa atacadista de tecidos lamentou-se de que as operações comerciais estão paradas, o custo de vida muito alto. Reclama também que o Governo mantém Cho Lon sob suspeita e não protege o bairro tão bem como faz com os outros. Os chineses temem que o Governo, num ato de desespero, pratique contra eles alguma violência, como confisco dos bens e expulsão do país.

Voltamos a Saigon, onde tenho hoje, depois do almoço, entrevista com um estudante, presidente do Centro Universitário Renascença, espécie de república onde vivem cem estudantes de várias facudlades. O estudante chama-se Do Hun Nan, é sextanista de Engenharia,e a primeria coisa que faz quando me vê é perguntar por Brasília e JK. Nana ha que o caminho para o Vietnam é fazer logo a paz e formar um governo de composição, que assegure a autonomia do país e em que o vietcong, ao lado de outras forças políticas, esteja representado.

Nan diz que a situação do Vietnam, em matéria de ensino superior, é precária. Poucas escolas, onde só estudam os ricos.

– Imagina: só temos duas faculdades de Medicina! E nossos problemas de saúde pública são terríveis… A guerra é um fantasma na vida do estudante. Se reprovado duas vezes, é imediatamente engajado; quando se forma, é obrigado a fazer quatro anos de serviço militar. Estão rigorosamente proibidas as manifestações estudantis no país, mas Nan diz tranqüilo:

– Estamos calados, mas pensando. Nossa hora chegará.

HANÓI FALA SEM PARAR

Decido a ir para o front, contando direitinho os dias, para que não fique no Vietnam nem um dia além do dia 20, que é o prazo final de validade do “risco de guerra” em meu seguro de vida. Foi tão difícil fazer esse seguro – nenhuma companhia brasileira aceitou – que não vou, agora, brincar com ele. Por indicação da agência France Presse, contrato para isso comigo à linha de frente um dos melhores fotógrafos operando atualmente no Vietnam – o japonês Kei Shimamoto. E acerto a viagem para depois de amanhã, dia 16.

Um amigo de Nguyen, fotógrafo amador, oferecera-se para revelar e copiar meus filhos, e nós vamos à casa dele, ver se as fotos estão prontas. O rapaz está em casa, nãonos vê chegar, e eu observo que ele tem o auditor do rádio portátil no ouvido. Pergunto a Nguyen o que há.

– Vai ver que eles está ouvindo a rádio de Hanói… É assim que todo mundo faz, para enganar a polícia.

Não estava, mas podia estar. A rádio de Hanói, muito potente, é sintonizada em Saigon mais facilmente que as rádios do Sul. Emite 24 horas por dia, tem programas em inglês para impressionar os soldados americanos, e faz pregação política permanente. Disse-me um estudante:

– Eles fazem muita pregação, mas o diabo é que não se pode negar que dizem duas coisas verdadeiras: a) os americanos são invasores estrangeiros; b) nosso Governo não representa o povo.

O dia termina com uma notícia triste: Ngá, a menininha, está com princípio de desidratação.

TREZE VICIS POR AMERICANO

Hoje a notícia é pior: Ngá foi levada às pressas para um pronto-socorro. Seu estado é grave. Combino com Nguyen: vamos vê-la à tarde.

Logo após o almoço, já com o fotógrafo Shimamoto, vamos ao comando militar americano para reservar lugar no avião de amanhã para Da Nang. O sargento que nos atende é simpático. Enquanto fala, mostra, colados na parede, dois cartazes. Um assim: “Responda-me apenas uma pergunta: que desgraça estamos fazendo aqui?” E o outro: “ Fuja! Sempre se pode dar um jeito de escapar disso”. Bem de tardezinha, vamos ao hospital ver a menina. Não nos deixam entrar, a hora de visitas acabou. Só posso vê-la agora quando voltar do front.

No outro dia, de acordo com as instruções, apanhamos o avião militar para Da Nag. É lá que está instalado o “centro de imprensa” do front, e é lá que os jornalistas ficam sabendo onde está havendo batalha. Decidimos – Shimamoto e eu – seguir para Quang Tri, onde a Primeira Cavalaria Aeromóvel está realizando operações de campo contra o inimigo.

Da Nang é um porto importante e uma das cidades principais do Vietnam central. Como Saigon, tem uma facha que impressiona bem – alguns restaurantes bonitos, onde os americanos vão comer, e cujas varandas são recobertas com tela forte, para evitar granadas. Mas, saindo do centro, a miséria é grande. O esgoto corre pelas ruas, há muita sujeira. E o mercado negro está sempre presente, com uísque, cigarros americanos, roupas e tudo o mais. No mercado central pode comprar-se uma coisa que está virando “atração turística”: as sandálias de pneu do vietcong.

No dia 17 partimos para Phu Bai. No aeroporto, uma companhia de marines está pronta para uma missão. Nas costas de um, vejo esta inscrição: “Isto aqui é o inferno: e pensar que eu sou da Califórnia”. Nas costas de outro: “ Quero um vici para o almoço”.

No vôo de Phu Bai para Camp-Evans, passamos sobre Hué, a velha cidade imperial, e pudemos ver os estragos que a guerra lhe causou. Camp-Evans é o QG da Primeira Divisão de Cavalaria Aeromóvel. Estamos a 60 quilômetros da Zona Desmilitarizada – que separa os dois Vietnans – e a 30 quilômetros de Khe Sanh. O major que nos atende informa que a sua divisão já matou este ano 3 mil inimigos, mas ainda há 10 mil vicis na região.

– Que tal o moral da tropa, major?

– Muito bom. Nossa média é recorde: 13 inimigos abatidos por um americano morto. De outro lado, tomamos cuidado para manter nossos rapazes dentro das melhores condições psicológicas. Mesmo em combate, têm duas refeições quentes por dia, recebem correio cada 24 horas e fazemos todo esforço para que nunca lhes falte cerveja.

UM BANQUETE TODA MANHÃ

Os dias que fico junto com os soldados americanos na linha de frente vão dar-me uma certeza: eles dispõem de uma infra-estrutura” de guerra impressionante. O breakfast é quase um banquete: um prato de carne, omelete, batatas, doce ou bolo. Depois, leite, sucos de frutas, geléias, molhos, café e creme à vontade. A “ração de campanha”, acondicionada numa caixa individual, inclui abacaxi em conserva, cigarros, doces, chicletes e papel higiênico. Além das três refeições normais, e da ração de campanha, os soldados ainda recebem uma caixa de “complemento de ração”: chocolate, biscoitos, bolachas, gomas, doces, confeitos, papel de carta, gilete, aparelho de barbear, paste de dente, sabonete, desodorante.

De Camp-Evans voamos de helicóptero para Betty – base mais avançada, um simples campo de pouso, onde todos vivem em barracas de lona. Aí, a 2 quilômetros de Quang Tri, vamos incorporar-nos à Companhia Delta (ou D), da Primeira Divisão de Cavalaria. Logo na chegada, dão-nos a notícia:

– Morteiros inimigos mataram, esta noite, o Coronel Petti, comandante do segundo batalhão, e seu maior comandante. O Serviço Secreto diz que os morteiros voltarão a cair.

BARULHO: O VICI ANDA POR AQUI

Vamos participar hoje de uma operação de reconhecimento da Companhia D, um terreno “muito infiltrado de inimigos”. Prevê-se barulho. O helicóptero nos leva – a mim e ao fotógrafo Shimamoto – ao local da operação, uma colina entre dois rios, e encontramos a tropa no breakfast. Quando acabam de comer, a operação começa – passo a passo, monótona. As duas da tarde, vem a ordem para interrompermos a operação. O Capitão Whithekind é o comandante da Companhia D. Simpático, sempre brincando com a gente. Como o calor é muito, inventa um banho de rio, e nós vamos todos para a água, enquanto alguns soldados montam guarda.

Depois do banho, Shimamoto e eu voltamos para a base. Combinamos voltar amanhã. Então haverá uma operação bastante movimentada: um agente diz que descobriu um subterrâneo vici com depósito de armas e alimentos. A missão é destruir o túnel e matar quem for encontrado.

Matar, essa palavra que a gente só usa pensamdo em bicho, aqui se refere a homens, e no começo fico espantado. Mas depois é preciso acostumar. Tom, 24 anos, 27 meses de Vietnam, diz-me friamente:

– Já matei 34 vicis e ainda quero matar mais trezentos. Só se uma vez matei quatro. Eu estava te tocaia, na beira do rio. Sabíamos que o vici podia aparecer por ali à noite. Dito e feito: às duas da madrugada, percebi o barulhinho de uma canoa. Firmei a vista e vi os quatro, remando. Esperei mais um pouco e atirei, de cinco metros de distância – um por um. Três morreram na hora, e um caiu ferido, na água. Podia atirar de novo, com ele se debatendo, mas esperei. Esperei que ele tivesse a ilusão de escapar. Com muito esforço, o homem agarrou uma raiz do barranco, para ganhar a terra. Quando estava com o corpo todo fora da água, dei um grito, ele se assustou e caiu novamente. Debateu-se outra vez, ficou de pé, e aí descarreguei o fuzil. Ele afundou mansamente. Tom está completamente envenenado: parece que só encontra prazer na morte. É um tipo raro entre os soldados, pois renovou pela terceira vez seu tempo de permanência no Vietnam. Por obrigação, cada soltado só fica aqui doze meses. A porcentagem dos que renovam é mínima.

– Renovo por duas razões: 1- todo o dinheiro que recebo, mando para casa: quero acertar a vida da minha família; 2- eu gosto da guerra e sei fazê-la.

Tom considera-se expert em explosivos e guerra de guerrilhas.

– Quando acabar esta guerra, vou lutar como mercenário no Congo, na América Latina, em qualquer lugar onde me paguem 500 dólares por mês.

Ele não entende “como é que esses vietcongs ainda lutam”. Acha que o moral deles tem que estar muito baixo.

– Uma vez, matei um e corri para ver sua mochila. Não tinha nada que me interessasse como lembrança. Trouxe para o acampamento sua comida: era um bolo de arroz cozido, esverdeado e malcheiroso. Tive impressão de que, se não o matasse a tiro, ele acabaria morrendo de dor de barriga, comendo aquele negócio.

Tom classifica assim os seus chefes: “ O tenente X é um espetáculo, como gosta de matar!; o capitão Y é um frouxo, tem mania de tratar dos inimigos feridos…”

VAN TRUNG, PROFFIONSAL DE GUERRA

O Capitão Leutsch, do Serviço de Inteligência, previne que da operação de hoje vão participar alguns mercenários vietnamitas, junto com a Companhia D. O fato é comum em todo o Vietnam. Quem começou a contratar mercenários nesta guerra foram os chamados boinas verdes, tipo de organização militar original, criada pelo Governo americano especialmente para o Vietnam. Os boinas verdes são meio 007, têm certa liberdade de ação e podem inclusive contratar grupos de bandidos do Laos e do Cambodja.

Logo que chegamos, de helicóptero, no local da operação, desce outro helicóptero, trazendo os mercenários. Van Trung é o oficial de ligação deles, pois fala inglês. Conta-me que ganham, conforme o posto, de 60 a 100 dólares por mês, mais um dólar por dia de combate efetivo. Pergunto a Van Trung por que é que ele luta por dinheiro.

– Da guerra ninguém escapa. Se eu for lutar no Exército do Sul, o soldo não vai além de 30 dólares. Aqui a gente ganha mais e, no caso de ser ferido, é tratado nos hospitais americanos.

A operação começa. Um vietnamita pequenino, com uniforme do Exército americano, é o capitão que diz ter descoberto o esconderijo vici. Leva-nos em fila indiana, pelos caminhos mais difíceis. Passamos por baixo de imensas moitas espinhentas, atravessamos rios com água pelo peito, rompendo quilômetros de brejo, empapando a roupa de lama. Caminhamos sob tensão e suspense: se houver de fato o subterrâneo vietcong, por certo haverá luta. Eles não deixam sem guarda uma posição tão preciosa. Sinto muito medo. Uma mina é descoberta e o pavor aumenta: é sinal de presença do vici. Em todos os rostos a angústia faz a sua marca.

A uma hora, depois de quatro de caminhada, o espiâozinho confessa que se confundiu e errou o caminho. Está perdido: só pode orientar-se de novo se voltar ao ponto de partida. A operação é adiada para outro dia e isso provoca grande alegria em todo mundo.

O capitão recebe pelo rádio o aviso de que os helicópteros chegarão para levar, às pressas, a Comaphia D para a ponte de Quang Tri. Há informação de que o vietcong a está minando. Em cinco minutos, pousam dois helicópteros grandes, barrigudos, de duas hélices, e três dos pequenos. A companhia inteira se acomoda – nós também – e vamos rapidamente para a ponte ameaçada. O desembarque é febril, todo mundo de arma embalada e disposição de combater. Quinze minutos depois tudo se acalma: a informação era falsa. Voltamos ao acampamento e minha calma dura pouco: o Serviço de Inteligência informa que hoje os morteiros cairão sobre nós. Recebo orientação para, ao primeiro aviso, correr para os abrigos subterrâneos e ficar lá, até que venha ordem de sair.

Com a notícia, dormir não é fácil. De madrugada, ouço um barulhão. Quero correr para o subterrâneo, mas me contenho: todo mundo dorme tranqüilamente, não é possível ser bombardeio. Ansioso, aguardo um pouco para acostumar bem os ouvidos. E fico sem graça: o barulho era de trovão. Logo depois, a chuva cai sobre o acampamento. A informação sobre os morteiros também era falsa.

Nota da redação:

No dia seguinte, Hamilton Ribeiro interrompia suas anotações na linha de frente: uma mina vietcong arrancou-lhe a parte inferior da perna esquerda.