SOBRE
O PROJETO
DORRIT
HARAZIM
JOSÉ
HAMILTON
ROSENTAL
CALMON
JOEL
SILVEIRA

Grã-finos em São Paulo

Joel Silveira
Grã-finos em São Paulo

(revista Diretrizes, edição 179, novembro/1943)

Durante uma semana, fiquei atordoado com a vida elegante de São Paulo. Haviam-me levado para algumas festas; primeiro um aperitivo, colorido e com pedaços de fruta dentro, depois uma carreira rápida de automóvel. Estive em jantares fascinantes. As mulheres, muito belas e perfumadas. Particularmente aquelas que puxam os cabelos para cima, num jeito que abandona aos nossos olhos as lindas nucas nuas. Durante uma tarde inteira, fiquei semideitado numa poltrona de um apartamento chique, no centro da cidade. O dono era um rapaz que eu não conhecia e que possivelmente talvez ainda não saiba quem sou e que fui lá fazer. Fui de mistura com os outros, como penetra. Os rapazes se vestem muito bem e telefonam. Telefonam de cinco em cinco minutos e conversam com Lili, com Fifi, com Lelé ́ . Recebem também telefonemas de Fifi, de Lili e de Lelé ́ . Conversei longamente com um rapaz, inteligente e vivo, que eu conhecera de caminhadas pela Lapa e discussões de madrugada, aqui no Rio. Está irreconhecível. Fez roupas novas (o feitio de cada, me garantiu, não custa menos de um conto e duzentos), adquiriu novos hábitos. Um dos hábitos: conversar sobre os feitos da noite anterior na pista do Jequiti.

São Paulo sempre teve seu mundo de luxo, um mundo essencialmente grã-fino. Ea coisa que acontece com todas as cidades que enriquecem. A riqueza paulista, é sabido, vem de suas fábricas. Agora as fábricas estão trabalhando ainda mais, porque a guerra é exigente. Dia e noite, os motores não param. Há uma turma de operários que passa o dia inteiro diante dos motores. Quando chega a noite, a turma vai embora, muito cansada, e chega outra que se cansará até de madrugada.

A ÓPERA – Então, as cifras vão crescendo. A gente lê os relatórios, tão frios, conversa com homens ricos, olha para as vitrines onde as peles e os brilhantes são cada vez mais caros – e tudo isto nos está dizendo que São Paulo está cada vez mais rico. As mulheres compram as peles, compram os brilhantes, os homens jogam na bolsa pequenas fortunas, jogam no Automóvel Clube o dinheiro que ganharam hoje, que ganharão amanhã.

O dinheiro torna tudo belo: o mundo elegante de São Paulo, neste ano de 1943, está num dos seus momentos de maior esplendor. Há uma atmosfera de conforto em tudo: as mulheres, como as orquídeas que nascem de dezenas de enxertos, não
poderão ser mais requintadas e preciosas. Ea como se fosse uma apoteose. Nas óperas a gente vê coisas mais ou menos semelhantes: o libreto vai, vai e, perto do fim, tudo se torna grande e maravilhoso. Depois a ópera acaba.

O MAIOR DA AMÉRICA DO SUL – Um dia desses um rapaz paulista, faminto e desempregado, resolveu se matar. Subiu até o último andar do edifício Martinelli – pularia lá de cima. Mas a altura era enorme e o rapaz vacilou. Lá embaixo, impaciente e aflita a multidão esperava que o rapaz se decidisse. Mas o rapaz resolveu não se matar. Os jornais anunciaram que, se o rapaz pulasse, aquele seria o mais sensacional suicídio da América do Sul. O edifício de onde o rapaz ia saltar é o maior da América do Sul. Mas não o será ́ dentro em breve: ao seu lado já está crescendo outro, que será ́ maior do que o maior da América do Sul.

Há coisas muito estranhas em São Paulo: os cafés não têm cadeiras nem mesinhas, dessas onde a gente costuma sentar e conversar. O trânsito das ruas é dirigido por guardas rigorosos, como nas outras cidades importantes. E nas salas do Automóvel Clube homens muito ricos jogam razoáveis fortunas, em alegres jogos de carta. Um financista de São Paulo, dono de várias fábricas e várias empresas, é homem sensível e inteligente, muito culto, que adora livros e faz versos. Seu rosto é cor-de rosa, como o rosto das crianças. Seus cabelos estão alvos, porque a vida cheia de trabalho de milionário os fez assim. Mas não existe ódio nem raiva na voz do financista: ele conversa sobre livros, lê ̂ suas traduções de poemas clássicos e sua voz é suave e absorvente, como uma esponja.

A FLOR – Mas os milionários são muitos. Raros são os milionários poetas em São Paulo, mas há muitos outros que não fazem versos. Uma noite, no Jequiti Bar, conheci alguns deles: o milionário Lafer, o milionário Pignatari, o milionário Matarazzo, o milionário Crespi. Era uma festa somente para milionários, e sobre todos aqueles sobrenomes repousava a força paulista de hoje. Por detrás dos sobrenomes, há um mundo incrível: centenas de fábricas, milhares de chaminés, milhares de motores, milhares de operários. Era um grupo terrível, avassalador. Com um gesto de mão, qualquer um deles poderia me aniquilar, me tanger longe, lá na rua. Mas os milionários apenas sorriam. Sorriam e bailavam com as mulheres, todas muito belas. Alguns daqueles homens, os pais de quase todos eles, haviam chegado pobres ao Brasil. Mas São Paulo os estava esperando, e hoje eles são donos das fábricas, das indústrias e dos lucros paulistas.

Ea noite e São Paulo rico está resumido ali na pista do Jequiti Bar. Durante o dia, as mulheres fizeram coisas inúteis: acordaram tarde, almoçaram em bloco, jogaram pife-pafe, compraram a revista Sombra, tomaram chá na livraria Jaraguá ́ , jantaram na Papote e falaram das amigas. Os homens ganharam dinheiro. Alguns não fizeram muito esforço para isto: apenas assinaram alguns papéis. Outros estiveram nas fabricas, conversaram com o gerente, telefonaram para o Rio. Ai tarde foram ao Automóvel Clube, um lugar triste como um cemitério. Perderam algum dinheiro em jogos inocentes; mas o que perderam nem chega a representar uma humilde fração dos lucros que conquistaram durante o dia.

O Jequiti é o mar noturno onde todos se encontram. Um mar de felicidade onde todas as possíveis tristezas e decepções se diluem e se inutilizam.

O “COIN DES BOUQUINS” – O chá na Jaraguá faz parte do ritual grã-fino. Lili não o dispensa. Zezé e Lelé fazem tudo, adiam tudo, mas não podem perder o chá ́ na Jaraguá ́ . O leitor, geralmente desprevenido, estará ́ pensando, sem duvida, que a Jaraguá ́ é apenas uma casa de chá. Não. A Jaraguá também é livraria.

Um dos seus frequentadores, aliás, me corrigiu:

– A Jaraguá ́ é uma livraria. Apenas nos fundos existe um lugar onde se pode tomar chá ́ e conversar sobre livros e quadros.

A intenção – intenção de alguns artistas e escritores – era muito boa. Mas me parece que o grã-finismo está estragando o plano. A verdade é que a Jaraguá, que os seus idealizadores planejavam tornar imprescindível no mundo artístico e cultural de São Paulo, é hoje, apenas, mais um ponto de reunião do grã-finismo, um ponto onde Fifi marca encontro com Lelé para falar mal de Zuzu.

Um dos autores do plano da Jaraguá me explicou:
– Nós fizemos aqui o que existe na Inglaterra. Você sabe (eu não sabia) que em Londres e outras cidades inglesas, principalmente Cambridge e Oxford, há o que se chama a “livraria com sala de chá” O objetivo dos ingleses (em Paris também existem muitas livrarias idênticas) é criar um ponto de reunião de artistas e intelectuais, enfim um “coin des bouquins”, você sabe.
– Um “coin des bouquins” como aquele de que fala Anatole France no “M. Bergeret”, que encontrava os companheiros de prosa”chez M. Paillor, libraire, à l’enseigne de St. Margueritte”. Outro objetivo da livraria é o de vender bons livros antigos e modernos, livros de arte, boas edições e encadernações. Depois o Lé o Vaz, sempre cheio de ideias, sugeriu a “Bolsa do Livro”.

Em poucas palavras, a “Bolsa do Livro” é um pedaço de cartolina pregado numa parede da livraria. Um cavalheiro que tenha um livro raro para vender, escreve o nome do livro e o preço na cartolina. Outro cavalheiro, que deseje adquirir uma raridade, faz a mesma coisa. Na tarde em que estive na Jaraguá, visitei a cartolina: o lado das preciosidades ofertadas estava repleto.

O SOBRENOME – Além do “quarto grupo” grã-fino, o grupo de Alfredo Mesquita e Roberto Moreira, existem outros três grupos, cada qual com suas características próprias. O primeiro grupo é formado pelos grã-finos de pedigree, os tais paulistas de quatrocentos anos, e representa o pináculo do grã-finismo. São criaturas repletas de antepassados, aqueles senhores heroicos e sem muitos escrúpulos que rasgaram as matas de São Paulo, vadearam os rios, descobriram as montanhas e fizeram as primeiras cidades. Morreram todos, estão enterrados na História, mas deixaram aos seus descendentes um presente régio: deixaram um cartão de visita, espécie de permanente com o qual um Prado, um Leme e um Alves Lima podem entrar em tudo sem pagar nada.

Podemos citar alguns nomes femininos, os mais requintados e su-gestivos, que formam a geleia grã-fina paulista: as Alves Lima, senhoras Né lia, Bebé , Vera e Stela, e as senhoras Fifi Assunção, Iolanda Penteado, Carminha da Silva Teles, Marjorie da Silva Prado, Belinha Sodré ́ , Alice Mendonca, e muitas outras. Em qualquer festa de importância, podemos encontrar todas elas, um grupo à parte, impermeáveis como se estivessem enroladas em papel celofane.

Cintilantes de joias, as senhoras do segundo grupo, o grupo “reserva”, tê m olhos derramados sobre a gente de pedigree. Ea o grupo das filhas dos italianos ricos, o grupo de dona Odete Matarazzo, dona Débora Zampari, d. Rose Frontini, d. Irene Crespi, d. Mimosa Pignatari, d. Helena Noquosi. O pai de dona Odete, por exemplo, veio ver o que havia por aqui, e por aqui havia muito.

D. Odete casou-se com um homem muito rico. O que é mais: tem um sobrenome, e os sobrenomes, quatro ou cinco deles, são os donos de São Paulo. D. Odete tem atrás de si fábricas e exércitos de operários. É uma senhora muito poderosa.

DINHEIRO – D. Fifi Assunção e d. Iolanda Penteado são muito mais paulistas do que d. Irene Crespi. São paulistas de quatrocentos anos. Vocês, que apenas são capixabas do princípio do século, não sabem o que significa, em São Paulo, ser um paulista de quatrocentos anos. Ea mais importante do que ter uma estátua na praça pública. O poeta Olegário Mariano tem uma estátua na praça pública e passa despercebido na Rua do Ouvidor. Um paulista de quatrocentos anos jamais será ́ confundido na multidão da Rua Direita.

Apesar de tudo, é d. Irene Crespi quem tem o dinheiro.

As qualidades cronológicas de dona Iolanda e de dona Marjorie não podem ver com bons olhos o passado um tanto rústico dos maridos da turma do segundo grupo. Mas o dinheiro está no segundo grupo, e o dinheiro tem voz eloquente e poderosa. O dinheiro é a grande arma do segundo grupo: a arma que dá qualidade ao trabalho dos esforçados italianos, que lhes credencia na sociedade, que lhes abre e às suas cintilantes esposas as inacessíveis portas dos solares de Piratininga. O dinheiro atrai o primeiro grupo, e os quatrocentos anos de qualquer Prado ou Leme se derretem nos milhões do Conde Matarazzo como manteiga em cima de uma chapa quente. O “ESTRIBO” E O “PENACHO” – Mas há o terceiro grupo, um grupo lamentável e melancólico. Ea uma gente que não vem lá de longe. Uma gente que nasceu por aı́, de família recente, de médicos de Barretos ou comerciantes de Bauru. Uma gente que não tem dinheiro. Os homens vivem dos seus pequenos ganchos e comissões. Alguns escrevem em jornais uma literatura precária. Mas a serpente do grã-finismo tomou conta de todos, dos homens e das mulheres. As mulheres sacrificam os maridos, fazem milagres no orçamento mensal – contanto que se tornem dignas do Roof ou do Jequiti. Ea o grupo do “estribo” e o grupo do “penacho”. Os homens se dependuram na vida mundana de São Paulo como se estivessem num bonde cheio. As mulheres usam terríveis penachos, porque acreditam ser isto a característica principal da grã-fina, como o dente de ouro é característica em todo turco.

E fazem coisas terríveis: quando, por exemplo, a turma do primeiro grupo telefona, princípio da noite, para o Jequiti, pedindo mesa, o gerente é infalível na resposta:

– Não é mais possível, cavalheiro. Todas as mesas de pista estão tomadas.

Ea que o grupo de penacho” foi na frente e, com uma diligência típica, recrutou para seus prazeres o que havia de melhor na boate. Por isso, leitor amigo, nunca se iluda: se você ̂ quer conhecer a grã-finagem paulista e for uma noite ao Jequiti ou ao Roof, não se deixe levar pelos arrogantes e coloridos penachos, nem pelos envernizados cavalheiros das primeiras mesas. Eles não são os tais. Os tais estão atras, possivelmente nos piores lugares.

O grupo do “estribo” se orgulha muito de suas relações com a gente chique. Diz sempre: – “Ontem almocei com sicrana. Hoje à tarde tomarei chá ́ com Fifi. Lelé ́ me telefonou. Oh! diabo, esqueci de telefonar para Zuzu.” Vivem disso, boiando num falso mar de grandeza.

JERRY, O ORÁCULO – Quando um ilustre casal paulista dá uma recepção em sua casa, já sabe para quem deve mandar os primeiros convites: para os maiorais do grã-finismo, os tais de quatrocentos anos, e para os dois cronistas sociais mais importantes de São Paulo:

Jerry e Bilm.

O verdadeiro nome de Jerry é Cornélio Procópio. Ea um rapazinho risonho, larga fronte brilhante, com um bigode reto e fino. Usa ótima dentadura e ótimo sorriso. Diariamente, na Folha da Manhã, Jerry aparece através de sua literatura cor-de-rosa. Se Jerry, na noite passada, esteve numa festa elegante, descreve como foi a festa, fala dos vestidos que viu, aplica adjetivos próprios aos melhores encantos femininos e masculinos, pulveriza inocentes ironiazinhas sobre tudo aquilo que não lhe agradou ao olfato e à vista. Um grã-fino me disse:

– Para que uma festa não seja um fracasso, tem que contar com a presença de duas pessoas: do Jerry e da Stela Alves Lima.

Jerry tem algumas credenciais importantes: possui a tal história dos quatrocentos anos, e sua família, ainda hoje, é dona de alguns recursos. Sua conversa é macia, sem espinhos. Os problemas do mundo não chegam até ele, e se chegassem Cornélio saberia como enfrentá-los: faria um muxoxo e telefonaria para Fifi. Fifi sem problemas nem angústias. No mundo elegante de São Paulo, Jerry é mais importante do que d. Odete Matarazzo ou d. Irene Crespi. Dona Odete tem fábrica, d. Irene tem dinheiro. Mas Jerry tem uma coluna diária na Folha da Manhã que é o oráculo da elegância paulista. A coluna de Jerry consagra ou põe abaixo qualquer pretensão grã-fina. Mas sua linguagem é sempre amena, porque um grã-fino nunca se compromete. O estilo de Jerry é como sua dentadura: uma coisa certa e limpa. Impossível é , porém, alguém saber se Jerry nasceu assim, com bons dentes, ou se o seu sorriso é realização de algum odontólogo caro. Aı́ embaixo vai uma amostra do estilo odol de Jerry. Trata-se de uma crônica que ele publicou há pouco no seu jornal sob o título de “Guarujá ́ “. Diz assim:

“O tempo não quis fazer um papelão. Não quis também que todos ficassem desapontados. A princípio relutou com ameaças bruscas de nuvens baixas e acinzentadas. Pingos grossos de chuva chegaram mesmo a cair. Depois, de repente, num abrir e fechar de olhos, um sol de ouro resolveu assumir a supremacia naquele céu sereno e azul cor de turquesa. E o Guarujá ́ viveu seus momentos de grande animação. A praia encheu, o cassino ferveu. Um movimento intenso reinou naquele ambiente simpático, cheio de sol, de vivacidade, de alegria e de espontâneo entusiasmo.”

“Os casais Fábio da Silva Prado, Edgard Conceição, Alberto Bianchi, Evaldo Foz, Vitor Meireles, Francisco de Souza Dantas, Vitor e Eduardo Simonsen, Remo Prada, Roberto Ferreira, Luís Campelo, os Condes Silvio Penteado e Raul Crespi….”

“Deslizava pela superfície azulada de um mar muito calmo e muito manso a silhueta alvíssima do Albacora o iate bonito do casal Jorge da Silva Prado, que carregava amigos para as delícias calmas de um longo cruzeiro.”

“Foi para que as tonalidades combinassem numa perfeita harmonia de cores que a senhora Horácio Lafer trazia um elegantíssimo slack em albene branco, d. Marjorie da Silva Prado, em amarelo e azul pálido, a senhora Evaristo Almeida ainda de branco e vermelho vivo…”

“A silhueta esguia dos coqueiros desgrenhados, ao longo das praias alvas, parecia inclinar-se à beira d’água para melhor ouvir o murmúrio suave das ondas esverdeadas que na areia vinham morrer…” Debaixo de amendoeiras frondosas, indiretamente iluminadas, em mesinhas de quatro, no ambiente simpático daquela casa normanda, o sr. e sra. Francisco Ramos de Azevedo conversam com os amigos num finíssimo jantar que a um grupo grande de pessoas tiveram a amabilidade de oferecer.”

“Os casais Armando Penteado, Eurico Sodré ́ , Mariano Procópio, Evaristo de Almeida, Jorge da Silva Prado…”

“O vinho corria louro e generoso como a alegria franca da reunião, como as chamas ainda mais louras daquelas pequeninas velas que iluminavam as mesas, como a amabilidade cativante de d. Zuleika, que, elegante num slack marrom e rubi, a todos distribuía atenções e incalculáveis gentilezas.”

BILM – Bilm, a outra cronista mundana, é muito diferente de Jerry. Seu verdadeiro nome é Irene de Bojano. Jerry escreve pela manhã. Bilm escreve à tarde, na edição vespertina da Folha. Bilm é muito mais seca do que Jerry. E também mais literata. Seu estilo, uma coleção de lugares-comuns regados a adjetivos próprios, prefere cuidar das coisas do espírito: versos, teatro, música. Constantemente Bilm cita poemas dos seus poetas prediletos, nacionais e estrangeiros. E suas preferências são muito instáveis. Bilm já gostou muito de Alberto de Oliveira. Hoje prefere Vinícius de Moraes.

Façamos uma demonstração prática: há uma festa em São Paulo, uma festa numa casa particular, música, champanha e comidas. Ea prato para Jerry. No outro dia, acontece qualquer coisa super grã-fina no Teatro Municipal, como o Cega Rega ou o concerto de um pianista cé -lebre: é prato para Bilm. Tal distinção faz com que Jerry nunca entre em atrito com Bilm. Cornélio e Irene são bons amigos, com raios de a delimitados. Jerry conhece todas as cores do batom. Bilm está perfeitamente a par de todas as premières de sucesso na Broadway.

LITERATOS DA FINESSE – O grã-finismo também tem os seus “intelectuais”, os seus literatos. Para qualquer grã-fino paulista, por exemplo, o maior escritor de São Paulo é o Sr. René Thiollier. René Thiollier já é um cidadão bastante velho. Mas continua rico e elegante. Sua residência é muito famosa: chama-se “Vila. Fortunata” e possui, entre outras surpresas, uma torre fina como um minarete. E lá em cima da torre, num pequeno gabinete, que Thiollier faz sua literatura, uma mistura de versos acomodados e ensaios históricos sem grandes ousadias. Um dos cargos de René : o de secretário perpétuo da Academia Paulista de Letras.

Literato grã-fino é Guilherme de Almeida. Atualmente, apesar de uma seção meio mundana que mantém na Folha da Manhã, Guilherme anda meio político com o grã-finismo paulista. E que ele cometeu o bruto erro de afirmar, numa reunião elegante, que estava se inclinando para o socialismo. Houve um espanto geral e Guilherme perdeu alguns por cento do seu cartaz. De qualquer maneira, suas crônicas diárias não são melhores nem piores do que as do Jerry. Às vezes são piores. Guilherme veste-se como um grã-fino do tempo em que Oswald de Andrade era grã-fino: polainas, pó de arroz no rosto e olhar vago.

Outro literato do grã-finismo é o nosso já conhecido Roberto Moreira, que fez, há vinte anos passados, uma conferência sobre Bilac. De lá ́ para cá ́ , em centenas de oportunidades mundanas, tem repetido a conferência para algumas gerações grãfinas de São Paulo. Ainda não tive oportunidade de ouvir uma palestra do Dr. Roberto. Mas um amigo me garantiu que na mesma existe mais recitativo do que na Biblioteca do Ar do Sr. Cesar Ladeira.

A especialidade de Paulo Assunção, outro “‘intelectual” da haute gomme, são os brindes. Ninguém faz um brinde melhor do que ele, particularmente os brindes de aniversário. O grã-finismo paulista tem seu historiador oficial: é o “escritor” Yan de Almeida Prado. Um dos seus poetas preferidos é o constante jovem Oliveira Ribeiro Neto, cuja árvore genealógica, no entanto, nasce em comprometedor solo sergipano.

Outro literato da finesse: Eurico Sodré ́ . Eurico é sonetista e diretor da Light. Em 1912 publicou o seu primeiro e último livro de sonetos. Mas foi o bastante, pois que nessas coisas literárias o grã-finismo não é muito exigente.

Figura ímpar na elegância dourada de Piratininga é o Dr. Roberto Simonsen, proprietário de algumas das mais robustas cifras nacionais. Nas horas vagas, o Sr. Simonsen escreve livros, artigos e discursos sobre a “promissora situação financeira do Brasil”, da qual ele é um dos sustentáculos. O Sr. Simonsen é também conhecido e admirado pelo seu amor ao vernáculo. Seus discursos e livros são primores de correção gramatical. E verdade que o milionário Simonsen, tão cheio de afazeres lucrativos, não tem tempo para perder com as virgulas e pronomes. Simonsen possui um gramatico especial e particular, o Sr. Marques da Cruz, que recebe mensalmente um ordenado convidativo apenas para pôr em alto estilo as considerações do seu patrão e espatilhar nas leis de Cândido de Figueiredo possíveis liberalidades linguísticas do financista.

Oswald de Andrade também já pertenceu à nata elegante de São Paulo. Mas foi expulso da finesse quando perdeu sua primeira fortuna. Depois disto, o finalmente romancista de Marco Zero surgiu como dono de várias outras fortunas. Mas o grã-finismo não pode receber em seu seio um cavalheiro que vive assim em altos e baixos econômicos. O que caracteriza um grã-fino do primeiro e segundo grupos é a sua posição econômica absolutamente estável. Durante muito tempo, Oswald de Andrade fez uma bruta força para voltar ao seio da haute gomme. Mas foi impossível. Hoje sua posição é a de um cidadão amargurado e revoltado com os seus antigos colegas de vida mundana. O que não quer dizer que, de vez em quando e a pedido das circunstâncias, o inquieto humorista não corteje alguns dos poderosos sobrenomes paulistas.

Menotti del Picchia também pertenceu ao grã-finismo. Mas hoje os grã-finos não o suportam. Naturalmente, Menotti, que tanta coisa já fez contra tantos, deve ter feito também algo contra os grã-finos.

O grã-finismo paulista não perdoa a Semana de Arte Moderna, que lhe roubou alguns dos seus elementos mais brilhantes. Antes da Semana, a vida social de São Paulo era muito acomodada. A Semana, ideia do grã-fino Graça Aranha, trouxe os primeiros desentendimentos e os primeiros atritos. O único elemento da Semana que a haute gomme militante de São Paulo não perdeu foi Guilherme de Almeida. Mas a verdade é que Guilherme entrou na revolução modernista pensando que se tratava apenas de um outro chá das cinco. Recuou a tempo. O desenhista Belmonte conseguiu introduzir algumas cunhas na finesse. Ea quase sempre convidado para as festas e os chás. Dá-se perfeitamente bem com o pedigree e os sobrenomes. Suas charges, sempre bem-comportadas e geralmente a favor dos mais fortes, têm-no ajudado muito na sua carreira vitoriosa. Creio que Belmonte é o único caricaturista (?) no Brasil que conseguiu juntar dinheiro com sua arte.

O COLAR DA PRINCESA – Mas nem sempre a vida de um grã-fino é plácida e rósea. De vez em quando acontecem tormentas e pequenas tempestades. Recentemente, por exemplo, o grã-finismo paulista sofreu um bruto golpe. Foi o caso do “Colar da Princesa”. A história pode ser contada em rápidas palavras: quando D. Duarte Nuno veio fazer a América aqui no Brasil, e resolveu casar com a melancólica princesa brasileira D. Maria Francisca, com o objetivo de consolidar as questões monárquicas entre Portugal e o Brasil, o grã-finismo paulista saudou o acontecimento com entusiasmo e alegria. Afinal de contas, teríamos em Petrópolis o momento mais alto da elegância nacional. Um príncipe de verdade, embora cabeçudo e meio falido, iria casar com uma princesa à moda da casa. Imediatamente uma lista começou a correr os meios da finesse de São Paulo: os grã-finos resolveram dar um rico presente aos nubentes, um precioso colar de diamantes, e a lista pedia donativos. Houve grã-finos bem estabelecidos na praça que não pestanejaram: com uma penada rápida assinaram dez e vinte contos. Outros assinaram apenas cinco. Outros ainda, um tanto encabulados, só puderam dar três. O colar foi comprado: parece que custou a razoável quantia de 300 contos (foi antes dos cruzeiros).

Depois fizeram-se os preparativos para o casamento. Os grã-finos mandaram fazer casacas especiais, compraram novos pares de sapatos de verniz ou polainas, e as mulheres gastaram fortunas em vestidos e enfeites. Um carro especial da Central , com lavatório completo, levaria a finesse até o Rio. Poucos dias antes do casamento miguelista, os grã-finos já estavam todos prontos. Esperavam apenas os convites individuais. Mas aí aconteceu a tragédia. Os convites chegaram um dia, mas não chegaram para todos. Chegaram apenas para os que haviam assinado quantia mais grossa: a gente dos dez e vinte contos. Foi uma decepção geral! Senhoras sensíveis tiveram ruidosos ataques de choro. Uma senhora criou olheiras. Um rapaz, visivelmente abatido, retirou-se durante meses para uma fazenda do interior.

Antes do caso do colar, a monarquia gozava de real prestígio no seio da finesse paulista. Mas parece que D. Duarte não é bom político. Com a sua falta de atenção tão lusitana, o príncipe de testa olímpica bombardeou seu prestígio entre os elegantes de São Paulo. Os monarquistas formam hoje uma minoria insignificante. Quando esteve em São Paulo, D. Duarte foi tratado muito friamente. Em companhia do pintor Di Cavalcanti, o jovem nobre visitou vários lugares históricos: o museu do Ipiranga e os andaimes da Sé . No museu aconteceu um detalhe pitoresco: é que os funcionários da casa tomaram o pintor Di Cavalcanti pelo príncipe, prodigalizando-lhe atenções e reverências. O príncipe, um tanto amuado, foi esquecido entre as relíquias históricas e os apetrechos indígenas. Nem chegou a visitar o “Jaú”.

E por falar no pintor Di Cavalcanti, definamo-lo como um dos casos mais esquisitos do grã-finismo paulista. O casal Di Cavalcanti, Di propriamente dito e a esplêndida pintora Noêmia, são queridíssimos nas rodas elegantes de São Paulo. O apartamento de Di, no centro da cidade, está sempre povoado da melhor fauna local. Di recebe telefonemas e convites para as melhores festas e as mais disputadas reuniões. Todo grã-fino e grã-fina paulistas anseiam ser pintados pela Noêmia. Ea a mesma coisa que almoçar na Papote. E coqueluche, como eles dizem. No entanto, apesar de perfeitamente acomodados na finesse, os dois não perderam nenhum de suas qualidades. Noêmia é uma das pessoas mais vivas que eu conheço. E Di, no fundo, é quem mais se diverte com aquilo tudo e de vez em quando consegue vender uma tela sua a qualquer grã-fino. Não se trata, portanto, de um diletante.

AS CONSIDERAÇÕES DE POLICARPO – Quase todos os cavalheiros da haute gomme paulista são donos de fábricas ou vice-presidentes de empresas importantes. Ser vice-presidente de qualquer coisa é uma das principais condições para o livre ingresso no perfumado mundo social de São Paulo. Existe até o caso de um escritor, dominado nestes dois últimos anos pelo grã-finismo, que fez uma bruta força, há pouco tempo, para ser eleito vice-presidente da Sociedade de Escritores Paulistas. Um título assim, num cartão de visita, teria algum efeito.

Os grã-finos paulistas não suportam o Rio de Janeiro. Têm um ar de absoluto desprezo para tudo que é carioca. Quando acontece aqui qualquer coisa de elegante e fora do comum, eles ficam lá em polvorosa e providenciam logo uma função idêntica em Piratininga, com mais lantejoulas e mais esplendor. Todo artista célebre e elegante que desembarca no Rio é imediatamente convidado a ir a São Paulo. Quando havia transporte fácil e o mundo estava melhor do que hoje, os donos das fábricas e as senhoras ricas pouco ligavam ao Rio: tomavam os transatlânticos e iam para a França ou para a Itália. Os Matarazzo, por exemplo, no tempo em que a escola era risonha e franca, nunca passaram um ano sem uma regular dose de luar e Verona e pombos na praça de São Marcos. A Itália e o fascismo estavam no seu sangue.

O último desespero da finesse paulista foi a “Cega Rega” que algumas senhoras jeitosas realizaram aqui no Rio. O povo carioca já está acostumado com esses desperdícios e não liga muito para os diletantes do Municipal. O carioca pega a coisa no ar, faz um trocadilho irônico, e esquece. Mesmo porque a finesse daqui é finesse de praia. De calção de banho é impossível a gente distinguir quem é o milionário Carlos Guinle ou o bookmaker da avenida. Ambos possuem o mesmo físico e a mesma lábia.

Mas a haute gomme paulista é maciça como um bloco bem unido: seus assuntos são seus assuntos, e é preciso atenção e carinho para eles. Quando tivemos aqui o Joujoux e Balangandãs, os paulistas bateram com o pé ́ e disseram que também queriam. Então os barangandãs foram prá lá. Agora, com a “Cega Rega”, aconteceu a mesma coisa. À hora em que estamos dedilhando essas considerações, chega-nos o eco dos primeiros sucessos dos grã-finos da praia do planalto. Os cronistas mundanos estão vivendo grandes dias. Jerry se derrete num mar de gozo. Bilm tem feito um tremendo uso da sua cultura.

Mas houve também vozes discordantes. Uma delas foi a do jornalista Policarpo Conceição, um pseudônimo, é lógico, no Diário de São Paulo, que teceu alguns comentários pouco alegres sobre a farra grã-fina. Policarpo é de opinião, logo de início, que o “Cega Rega” não tem motivo de ser. Diz ele que no instante preciso em que as classes média e proletária sofrem na pele as consequências da guerra (não há açúcar, não há carne e os gêneros estão cada vez mais caros), não é direito que senhoras pouco compreensivas gastem quantias fabulosas em vestidos de seda e veludo para satisfazerem pequenas veleidades artísticas. Policarpo diz mais: se o objetivo filantrópico do “Cega Rega” é auxiliar a Cruz Vermelha, por que, em vez de representação no palco das grã-finas bem vestidas, não se entregou àquela instituição o que seria gasto com as sedas e os veludos? Não há razão para ostentação e para luxos descabidos, futilidades ostensivas que devem contrariar muito os que, como os operários das fábricas paulistas, estão suando em bicas nas indústrias de guerra do país. As considerações de Policarpo, apesar de um tanto gris, como diz Jerry, são bastante lógicas.

Mas as considerações de Policarpo não chegaram ao mundo cor-de-rosa do grã-finismo paulista. O “Cega Rega” teve lá uma brilhante estreia. Ea o que nos dizem os cronistas sociais cariocas, que também fizeram parte do elegante cortejo ferroviário que, nestes bicudos tempos de guerra foram a Piratininga mostrar suas brilhantes inutilidades. Um repórter bem-informado nos declarou há poucos dias que a viagem daqui para lá, no comboio da alegria, foi uma verdadeira sucessão de prazeres e encantos. As senhoritas recitaram, os rapazes cantaram coisas formosas, e houve até ligeiros ensaios – o trem varava a noite, apitava nas curvas, furava túneis e cá ́ dentro era um mundo de coisas cheirosas e gostosas.

Em São Paulo, a turma do “Cega Rega” desembarcou como um batalhão de heróis. A grã-finagem paulista estava toda na estação. Jerry, algo nervoso, o passinho curto multiplicando suas parcas possibilidades de pedestre, contava com a pontinha do indicador as figuras que iam descendo: se alguma houvesse faltado por motivos reumáticos ou gripais, aquilo seria uma punhalada no frágil coração de Jerry.

Mas ninguém faltou. Gripes e reumatismos foram adiados. Quando o palco do Municipal se abriu, de noite, qualquer reformador simplista poderia perfeitamente, com uma simples bomba, colher uma esplêndida e completa safra: ali dentro havia material suficiente para satisfazer a um batalhão de terroristas.

Ali estava a Condessa Amália Matarazzo, debaixo de uma chuva de cintilações; ali estava dona Ernestina Alves de Almeida, ali estava dona Maria Helena Ramos. E mais uma porção: dona Julieta Alves Lima, a Condessa Mariângela Matarazzo, dona Mimi Lafer, dona Renata Crespi Prado. A comissão de recepção não podia ser mais legal: dona Albertina Spengler, dona Belinha Sodré ́ , dona Carmem da Silva Teles, dona Ana Alves Lima, dona Ester Cardoso de Almeida, dona Fifi Assunção, dona Raquel Simonsen e dona lolanda Penteado. E por detrás de tais poderosas casamatas, todo um batalhão de inquietos e encadernados jovens.

No dia seguinte, a mesma fauna estava toda reunida no palacete (palacete vírgula, palácio) dos Condes Matarazzo, na Avenida Paulista (a Avenida Paulista também pertence aos condes), Henrique Liberal & Cia., na sua melhor maneira rococó ́ , transformara os salões carcamanos dos condes em “oásis edênicos”, como afirmou, num repente de entusiasmo, um cronista carioca. O cronista afirmou também que, naquela noite, “a residência dos Condes Matarazzo honrava qualquer capital civilizada”, e nos deixou de água na boca quando se referiu aos “candelabros raros e aos quadros de valor inestimável “.

VERBAS PARA O GRÃ-FINISMO – Comento, com Fifi, a vida mundana de São Paulo, e ela me diz na sua vozinha:

– Está adorável! Nunca tivemos uma vida social tão intensa.

Ea que os motores das fábricas estão trabalhando muito. Já ́ não há horas vagas nos domínios dos Matarazzo e dos Crespi. Os enormes portões da Mooca não se fecham: expulsam, manhã cedo, uma turma de gente cansada e cinzenta, engole mais gente que se cansará durante o dia. Os relatórios, sempre exatos, nos contam coisas muito importantes. Dizem, por exemplo, que os lucros de Matarazzo no ano passado foram de 700 milhões de cruzeiros. É muito dinheiro e com ele os Matarazzo podem fazer grandes e belas coisas. Algum dia (quem sabe?), Matarazzo fará um refeitório ventilado e claro para seus operários. Fará também uma maternidade para as mulheres dos operários. Não uma maternidade elegante e cara, a melhor da América do Sul, como a que ele ergueu lá para os lados da Avenida 9 de Julho; apenas uma maternidade sóbria, mas que seja de graça. O Cotonifício Rodolfo Crespi S.A. teve, em 1942, um lucro sobre o capital de mais de cinquenta e seis por cento. A Nitro Química, em 1942, teve um lucro de 28 milhões, 330 mil cruzeiros e alguns centavos. Em 1940 e 1941, os principais bancos reunidos somaram um lucro de Cr$ 123.263.456,00. E os bancos pertencem aos homens que são donos das fábricas e das indústrias. A Fiação, Tecelagem e Estamparia Jafet fez bons negócios em 1940, 1941 e 1942, a Jafet deu um balanço e seus donos foram presenteados com um esplêndido resultado: um lucro de 16 milhões e 297 mil cruzeiros, 181 por cento sobre o capital. A Pirelli S.A. ganhou, em 1942, perto de 22 milhões de cruzeiros, 72 e meio por cento sobre o capital. A S.A. Moinho Santista ganhou, no mesmo ano, perto de 39 milhões de cruzeiros, 53 e meio por cento sobre o capital.

Sobre números assim, tão eloquentes, é que o paulista repousa o esplendor da haute gomme paulista. O Brasil está vivendo uma era de fartura. Uma fartura que, na verdade, não chega para todos. Mas chega para Fifi, para Lelé e para Mimi, orquídeas raras. De noite, quando se acendem as luzes de São Paulo, a cidade fica ainda mais imponente. Os anúncios luminosos rasgam o céu: são anúncios das melhores e mais poderosas coisas da América do Sul. Há centenas de indústrias em São Paulo. Cada anúncio luminoso, um anúncio alegre. Cada indústria pede centenas de motores, cada motor pede dezenas de operários. Dia e noite os operários manejam os motores. Os motores fazem dinheiro. Os olhos e o sorriso de Jerry se derramaram satisfeitos sobre Fifi, como se Fifi fosse uma criação de sua coluna mundana na Folha da Manhã. Amanhã ele escreverá: “Na boiserie alta e clara de carvalho natural da sua sala de jantar, a senhora Stela Penteado Maurel sempre gostou de enfeitar as rendas cremes da sua toalha de mesa com o colorido quente de rosas cor-de-rubi. Cinco candelabros antigos de prata acariciavam a suavidade do ambiente estilizado com a luz fosca das suas chamas pequeninas. Cupidos brancos de sax ofereciam flores por entre os personagens medievais de uma tapeçaria de Aubusson, e os sorrisos amáveis de todos os convidados.”

Todos estão muito elegantes e adoráveis. E Jerry já sabe o que dirá, amanhã, de cada um: “A senhora Maria Penteado de Camargo pensava em reabrir aquele salão moderno de d. Olivia, escondido entre as sombras e folhagens escuras. Guilherme de Almeida recordava a sua recente viagem a Ouro Preto; os senhores Lavanchy e Henry Gueyrand falavam da Suíça; o casal Jacques Pilon, de uma fazenda em Campinas… As senhoras Maria Furtado Alves e Lima e Bebé Nogueira sorriam por entre as espirais azuladas de seus perfumadíssimos Luckies… A noite úmida de fora escoava-se serena, por entre as luzes mortiças dos salões franceses. Como seria bom se pudesse eternizar momentos assim…”

Ea Jerry, seria muito bom. Seria adorável. Mas eu acredito não ser possível.