SOBRE
O PROJETO
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CALMON
JOEL
SILVEIRA

Guatemalteco acusa Exército de massacre

Rosental Calmon
Guatemalteco acusa Exército de massacre

Um lugar na Selva Mexicana, Fronteira com a Guatemala (Jornal do Brasil, 8 de outubro 1982)

-Eu estou aqui sentado. Eu quero morrer. Já estão todos mortos, todos meus parentes. Os soldados fizeram um monte com os cadáveres, uns dez cadáveres. Deu no meu coração um sentimento assim, que me fez abaixar atrás dos companheiros mortos. Depois jogaram as bombas (granadas). Uma, duas, três, quatro, cinco bombas. Ah, meu Deus, por que não pega em mim? E os jorros de sangue sobre mim”.

No alto de um monte, sentado num troco úmido, Mateo Ramos Paiz, 57 anos, conta, emocionado, como o Exército da Guatemala massacrou toda a população – mais de 300 homens, mulheres e crianças – de sua aldeia, a poucos quilômetros daqui. Era uma comunidade indígena, como quase todas no interior da Guatemala. Mateo está muito triste e, às vezes, parece ver de novo as cenas de matança. “Ai, meu Deus”, vai repetindo, em meio a sua história.

Só dois

Antes de começar o massacre do povoado de San Francisco, os soldados saquearam todas as casas, que depois foram queimadas – restaram apenas umas quatro ou cinco. Só escaparam Meo Pérez Ramos, ao ser confundido no meio de uma pilha de cadáveres, e outro camponês, Mateo Perez Ramos, o único que se salvou entre seis que fugiram correndo e foram metralhados. Outro escapou ferido, mas morreu no hospital da cidade mexicana de Comitán.

Esse massacre, porém, não é uma exceção. Ao contrário. Viajando por esta região de fronteira do México com a Guatemala, podem-se ouvir repetitivas histórias de matanças cometidas pelo Exército guatemalteco, em sua guerra contra os grupos de guerrilha esquerdista que atuam naquele país. Em vários massares, os camponeses foram torturados e famílias inteiras queimadas vivas, depois que cuidadosamente se espalhou gasolina em suas palhoças.

O caso de San Francisco não é, porém, uma simples história de pessoas que ouviram falar. Além dos dois Mateo, há vários outros testemunhos de pessoas da região, que fugiram para este lugar no México, aonde só se chega depois de longa caminhada por uma estreita trilha numa densa região de selva. Aqui se encontram escondidos e temerosos de que o Exército da Guatemala os localize e os mate, como já fez com todos seus parentes.

Impressionados com a história deste massacre, alguns padres que trabalham neta região gravaram o impressionante depoimento das testemunhas. Além disto, fizeram com eles uma lista de 302 habitantes de San Francisco que foram assassinados. Além dos nomes, a relação inclui idades e parentescos de cada vítima. Mas os próprios sobreviventes acham que o total de mortos é maior, porque um censo feito pouco antes do massacre indicava 350 habitantes em San Francisco.

-Nós estamos em silêncio. Estamos tristes…. Assim, vendo o dia passar. Não quero trabalhar. Quero só ver, quero só ficar triste. Ai, meu Deus – dizia Mateo, já sentado no tronco, num monte um pouco acima do grupo de refugiados que festejava pois acabava de matar uma vaca magra, trazida da Guatemala. Comeram carne pela primeira vez esta tarde, depois de muitos dias.

Mateo apontava para os seus companheiros:

-Eles estão contentes. Estavam em San José e puderam trazer suas famílias.

San Jose é uma outra aldeia, pertinho de San Francisco e habitada por pessoas daquela comunidade que, há alguns anos, se mudaram para lá. Mateo atende, então, o pedido para narrar o massacre.

Como Formiga

Foi no dia 17 de julho, um sábado. Aproximadamente às 11 horas chegaram os soldados.

-Vinham de todos os lados, como formigas – e eram cerca de 600. Os primeiros perguntaram onde estava o campo de futebol, onde minutos depois aterrissava o helicóptero. Alguns estavam reunidos para organizar patrulhas de defesa civil, como o Exército manda, mas tiveram que ir carregar umas 50 caixas que o helicóptero trazia. Era comida para os militares. – Depois, o sargento diz: ‘dentro do juzgado’ (chamam de juzgado uma espécie de delegacia de polícia rural na Guatemala ). Todos os homens foram para o juzgado. Os soldados iam de casa em casa e buscavam mulheres e crianças para levar para a capela. Como não cabiam todas ali, levaram também para uma casa. Os soldados ficavam na escola e os demais trabalhando para trazer as mulheres. Pediram dois bois para comer. Foram uns oito homens buscar os bois.

-À 1 hora da tarde, começa a guerra. As mulheres e as crianças que estavam na casa morreram primeiro. No jusgado, uns rezavam e outros diziam: “estão matando nossas famílias, vamos sair”. Mas Francisco, o administrador da fazenda (onde ficava a aldeia) dizia: “não vamos enfrentar esses homens maus.”. Depois, começaram a matar as que estavam na capela. As mulheres e as crianças gritavam. Não ouvíamos tiros. Era pura faca e facão o que usavam. Cortavam aqui (no pescoço) e gritavam. E todos griyavam. Ai, que dor lembrar isso – Mateo está à beira do choro, mas não chora. Transtornado, ele diz que se lembra de algo horrível que viu pela fresta da porta.

-A capela estava em frente, eu vi um soldado levando para lá um garotinho de uns sete anos que gritava, chorava. Na porta da capela, o soldado o matou, cortando aqui (na barriga). Apareciam as tripas. Ele jogou o corpo dentro da capela – diz Mateo, ainda mais emocionado, antes de repetir um “ai, meu Deus”.

Conta que, às 15h, mais ou menos, os soldados começaram a matar os homens. Primeiro foram levando grupos de quatro para perto da escola, onde estavam os oficiais.

-Havia seis coronéis – garante Mateo – nós só ouvíamos os tiros e, logo depois, vinham buscar mais. Vamos, vocês têm que vir, conforme a lei, diziam os soldados. Que lei? Nós não roubamos, não temos delito. Nós não entendemos. Foram saindo mais e mais grupos.

Entre 16h e 176h, aproximadamente, alguns fogem pela janela que havia atras do juszago.

-Eu não fui – conta Mateo – Eu queria morrer. Não passou pela minha mente fugir. Par que sair? Que eu morra!. Para que sair? Eu queria morrer, porque toda minha família já estava morta.

-Levaram três velhinhos. Levaram para matar. Um deles tinha mais de 100 anos. E mataram na porta do juzgado. Cortaram o pescoço, como se mata carneiro. Dentro do juszado, alguns estavam rezando. La fora, os soldados cantavam e dançavam ouvindo música em nossos gravadores. Outros matavam. Era como uma festa para eles.

Juntam uns dez cadáveres dentro do juzgado, onde se encontra Mateo. Um ferido xinga o soldado e diz: ”Estou vivo, mais um tiro aqui”. Atendem o pedido imediatamente. Os corpos estavam amontoados e Mateo sentado atras. Jogam cinco granadas, que despedaçam os cadáveres, mas Mateo fica no meio dos pedaços, coberto de sangue de seus companheiros, esperando a morte. Queria a morte. Um soldado chega a agarrá-lo pela camisa, na altura da nuca. Mas outro lhe diz “chega, basta, vamos embora daqui”. Os soldados saem, para continuar sua festa sinistra do lado de fora. Encharcado de sangue, Mateo fica junto aos cadáveres.

-Então vinha na minha mente: por que não peço a minha bala? Percebo que estão pondo fogo na casa. Lá fora, estão tocando nossa marimbas (um instrumento de ressonância, de madeira, tipo desta região). Também têm música dos nossos gravadores. Eu tinha um gravador de 280 quetzales (cerca de 50 mil cruzeiros). Meu filho estava ali, morto. Tinha 37 anos. Então, eu estou pensando: vou sair. Mas, penso que primeiro tenho que rezar pelos mortos. Perdão, companheiros, mas vocês já estão mortos. Então, tirei as botas, porque tinha muito sangue dentro delas. Pedi a Deus para sair, disse aos mortos: Primeiro Deus, e, agora, eu vou embora. E fui pela janela. Caí com as mãos no chão e saí engatinhando. Quando estava meio longe, ouvi barulho. Saía outro vivo de lá. Mas os soldados vêm com as lanternas e plom, plom, pom. Matam ele, como a um animal. Eu vejo tudo, escondido no mato. Fico quieto até, acho, que 11 horas, quando já estão dormindo. Então saio e venho me esconder aqui no México.

“No caminho havia 9 corpos”

Já tinha chegado neste ponto a narrativa, quando aparece o outro Mateo. Só que não aceita conversar. Diz que não tem motivos para ter confiança, que suas vidas correm perigo, que já se está esquecendo do que aconteceu. Depois apenas confirma o depoimento que deu aos padres.

– É certo, mas não sei se fiz bem ou se fiz mal em contar – comenta, desconfiado.

Outro sobrevivente do massacre, Andrés Paiz Garcia, de 45 anos, também se encontra escondido nesta selva do México, onde quase não há terrenos planos, as montanhas são muito altas, terminando, às vezes, em penhascos enormes e onde a mata parece misturar-se com umas poucas plantações de milho e de café. Ele conta calmamente como escapou.

-Os soldados mandaram buscar dois bois. Eu fui num dos grupos. Então, eu pensei, eles vão nos massacrar e resolvi fugir para a montanha. Falei com os outros para não voltarmos. Mas eles disseram que não, porque se não levássemos o boi, iam matar nossas famílias. Mas, eu fugi, fiquei escondido no mato. Era perto. A um quilômetro de San Francisco. Depois, começaram a matar os pobres lá embaixo e eu ouvindo os disparos. Eu me assustei muito e vim par ao México – conta Andrés Paiz Garcia, que perdeu toda sua família: esposa, nove filhos e sua nora.

-Eu me salvei porque estava no campo, trabalhando na minha plantação de milho. Quando voltava, me encontrei com um garoto que me avisou sobre os soldados – diz Bartolo Garcia, de 61 anos, que está ao lado de Andrés Paiz. Os dois se encontraram no caminho para o México e agora estão sentados num banco na casa de um camponês mexicano que lhes deu pousada.

Também está ali senado Francisco Paiz Garcia, de 24 anos. É da mesma comunidade de San Francisco, mas morava em San Jose, ali nas proximidades.

-Todos os que estavam em San Jose fugimos quando nos avisaram do que houve em San Francisco, conta ele.

A facão

Cinco dias depois do massacre, o grupo de sobreviventes voltou à aldeia. Os dois Mateo estavam nesse grupo. Andrés Paiz diz que foi movido pela cólera.

-Os corpos estavam queimados e não tinha sido enterrados. Só quatro ou cinco casas não foram queimadas. Não se podia reconhecer os corpos e nos não os sepultados, porque tínhamos medo e voltamos logo – conta Andrés Paiz Garcia.

-No caminho, encontramos nove corpos, a uns quatro quilômetros de San Francisco. Era um grupo que estava voltando de uma colheita de milho e que, no caminho, encontrou os soldados. Todos foram mortos, com o pescoço cortado com facão. Um deles eram Bartolo Peres Paiz, de apenas 12 anos de idade,- conta Andrés.

Há poucos dias, morreu uma criança entre os refugiados de San Jose e San Francisco. Eles fizeram um caixãozinho e queriam enterrá-la em seu país, mas, pouco depois de cruzar a fronteira, uma patrulha do Exército os viu e disparou contra eles. Por sorte, conseguiram escapar vivos, mas deixaram o caixãozinho jogado no chão. Dias depois, tomaram coragem novamente e foram lá de novo. Finalmente, conseguiram sepultar os restos do menino em sua pátria, a Guatemala.

Em toda a região de Huechuetenenango, onde se encontram San Franciso e San Jose há muitos outros povoados que também estão completa ou parcialmente abandonados, devido ao terror criado pelos massacres cometidos pelo Exército da Guatemala. É o caso de Xamexu, aldeia do município de La Democracia, de onde saíram cerca de 400 refugiados que agora estão espalhados em Rancho Tejas e outros acampamentos no México.

-Lá, em Xamexu, só ficou o silêncio – comenta Pascoal Mendez Sanchez, 35 anos, ao lado da mulher, da sogra e de um filho pequeno. Ele fugiu no mês passado, depois que o Exército chegou a sua aldeia, onde já tinha executado 20 camponeses em maio deste ano.

Eles chegaram de madrugada, foram entrando nas casas e muitos escaparam, inclusive pascoal. Mas, sua mulher Maria Sales ficou e ouviu dos soldados a advertência de que o marido tinha que se apresentar no dia seguinte.

-Eu já estava escondido na montanha. E quem vai se apresentar nesses casos? Eu fugi para o México. Meus parentes que ficaram lá morreram, conta Pascoal.

Dessa vez, mataram 11 pessoas, cujos corpos foram deixados junto a uma moenda de cana que há em Xamexu.