SOBRE
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SILVEIRA

Jango: o começo

Joel Silveira
Jango: o começo

Tudo indicava que 54 seria no Brasil um ano igual aos outros: no dia 1º faltara água em Copacabana; o discurso do presidente, na véspera, fazia promessas e anunciava venturas; e vinha do Ceará um telegrama onde se noticiava que, ao contrário do que se esperava, as chuvas não haviam caído. Na sua coluna, no matutino, Rubem Braga contava que vira de uma janela do Hotel Comodoro, em São Paulo, o dia e o ano morrerem. E aos dois dissera com uma certa melancolia: “Adeus”. Outros adeuses foram ditos, por outras pessoas menos líricas e mais aflitas: adeus para o salário-mínimo, promessa que não fora cumprida; e adeus a Cristiano Machado, que havia morrido quando só faltavam sete dias para o ano acabar.

Em Minas, naquele primeiro dia de janeiro, discutia-se a possibilidade de um acordo político entre o PSD, a UDN e o PR. Aqui no Rio, o Sr. Jango Goulart dava os últimos retoques numa greve a ser deflagrada no setor da alimentação – mas a greve não houve (possivelmente algum pelego, raça ainda não extinta, deve tê-la comido). Fúnebre, o Sr. Augusto Frederico Schmidt informava numa entrevista que “a hora é nada risonha nem franca”. E um trecho do editorial do Diário de Notícias sentenciava: “O ano em que estamos ingressando poderá ser o ponto de partida para que se redimam os nossos costumes políticos”.

Na tarde do último dia de 53, o Sr. Oswaldo Aranha, no seu gabinete do Ministério da Fazenda, emergiu de uma montanha de cédulas novinhas em folha e declarou: “Não posso deixar de emitir”.

No Maracanã, 1954 começou com um “clássico” Vasco x América, com a vitória do primeiro; e Rigoni, na véspera, havia ganho a “Taça Eficiência”. No setor internacional, o Peru prometia soltar Haya de La Torre no quinto dia do ano (não soltou); os americanos prometeram explodir uma nova bomba de hidrogênio no Pacífico (explodiram); e Paz Estenssoro, na Bolívia, afirmou num discurso que “nunca mais haveria revoluções militares na Bolívia” (houve mais umas vinte de lá para cá).

No Rio, o termômetro pegava fogo: 38 graus na Praça XV, 37,5 na Muda e 39,5 na Penha!

Esperanças vãs, tristezas várias, alegrias rotineiras – 1954 seria, certamente, um ano como os outros. Foi quando, de repente, oito meses depois, no dia 24 de agosto, às 8.25 da manhã, ouviu-se um Cro no Palácio do Catete. O viajante avistara a tropa ao longe, nascendo das coxilhas como uma miragem, galopou em sua direção. Três peões tangiam o gado, e era impossível quase distinguir um dos outros, fechados todos nos seus casacões pesados (soprava o cortante minuano hibernal), as calças largas acabando nas botas curtas e franzidas, de esporas pontudas. O viajante aproximou-se, os três estancaram. Um deles tirou o chapéu, de abas largas, passou a mão pelos cabelos negros e fartos; e como os dois outros tivessem ficado mais para trás, o forasteiro concluiu que o peão de pele mais clara e cabelos pretos (era também o mais moço dos três) devia ser o comandante da tropa. Aproximou-se dele, explicou:

– Acho que estou meio perdido…

– Para onde o senhor quer ir?

– Até a fazenda do Dr. Jango Goulart.

O peão apontou na distância:- Que é que o moço queria, Doutor Jango?

– Vá seguindo sempre nesta direção. O senhor ainda tem que vencer uns vinte quilômetros.

O viajante agradeceu, parCu num galope. Então os outros dois peões se juntaram ao terceiro, um deles perguntou:

– Falar comigo. Mas lugar de conversa é em casa. Ensinei a ele o caminho da estância…

E voltou ao seu silêncio que mais calado parecia no silêncio geral das coxilhas onduladas, um silêncio quebrado apenas pelo tropel surdo do gado sem pressa.

De 1932 (ele tem então 14 anos de idade), quando o pai, inválido, The transfere o comando da casa, até 1945, quando começa a interessar-se pela política, João Goulart não é outra coisa senão um homem do campo. O largo convívio com os peões deu-lhe um jeito de peão; misturado, no galpão, com os tropeiros, ele é apenas mais um tropeiro que se perde em cismas, que conta histórias e chupita o chimarrão.

Sua maneira de dirigir suas fazendas (hoje em número de cinco) é aCva e direta: suas ordens, ele próprio ajuda a cumpri-las, quer “tropando” com os peões, quer com eles se demorando, no frio da fronteira nas longas “invernadas”.

Vejo-o agora, no apartamento moderno de Copacabana, afundado numa poltrona, o colarinho solto, a camisa arregaçada, a perna esquerda estirada, e sinto que a vida federal, que se tornou intensa, não Crou ao peão de São Borja as suas características mais marcantes. Sua voz é descansada, seu olhar é desconfiado e arredio; e o tom da conversa, quando ele me conta coisas de sua vida e da política, tem muito daquela melopeia entrecortada de interjeições `picas, que é a maneira de falar da gente das coxilhas e do galpão.

Eu não queria uma entrevista sobre política, mas dados que pudessem reconstituir para o público, que só lhe conhece a atuação partidária, o lado humano de sua pessoa. João Goulart me responde que sua vida “não é lá grande coisa”. “Nunca fiz nada demais; passei a juventude e a adolescência a tanger gado. Acho que não tenho muito o que contar”.

De um fato, contudo, ele se recorda com alegria: o de ter sido promovido a corneteiro-chefe da banda escolar do Ginásio Santana, de Uruguaiana. Tinha, então, oito anos de idade, me explica, e acrescenta:

– Modéstia à parte, eu era um bom corneteiro.

O curso primário, ele o fez na fronteira. Segue, depois, para Porto Alegre, onde se matricula na Faculdade de Direito. Mas então o velho Vicente Rodrigues Goulart, seu pai, é um homem inutilizado, e ao estudante Jango Goulart, que é o filho mais velho (são seis irmãos ao todo, dois homens e quatro mulheres), compete cuidar da fazenda, dos seus negócios (que não vão bem), manter a disciplina entre os peões e dirigir o seu trabalho. Jango Goulart só aparece na Faculdade de Porto Alegre para as provas, passa meses inteiros sem assistir a uma só aula. Forma-se em 1939 – o peão agora é doutor. Logo depois morria o velho Vicente Rodrigues Goulart, coronel dos “provisórios” do general Flores da Cunha, estancieiro de fazenda e gado cravados de hipotecas – “camponês honrado e de reputação inatacável que passou a vida trabalhando a terra com suas próprias mãos”. (As palavras são do General Flores.)

Agora a vida era uma só, repetindo-se todos os dias, se espraiando pelas coxilhas, a comandar tropas de peões, a tanger o gado, a enterrar-se, meses a fio, na solidão das invernadas. O peão João Goulart nem sequer mandou emoldurar o seu diploma de advogado: mas os que o cercam, no campo, na fazenda ou no galpão, não lhe negam o título: ele agora é o “Doutor Jango”.

Nas idas e vindas pela fronteira, uma das paradas obrigatórias é na fazenda dos Vargas, na vizinhança. O velho Vicente Rodrigues Goulart é tido, na estância do Coronel Vargas, como pessoa de casa, principalmente pelo Dr. Getúlio, de quem é amigo desde que ambos eram meninos. Quando Getúlio se forma e vem advogar em São Borja, é o coronel Vicente Goulart que lhe envia os primeiros clientes. Ainda hoje João Goulart guarda várias cartas em que seu pai fazia a apresentação daqueles clientes, todas elas terminando sempre com o mesmo pedido: o de que o jovem advogado não cobrasse muito caro pela sua advocacia.

Até o dia de sua morte, o velho Vicente Rodrigues Goulart, em matéria de política, obedecia ao comando de Borges de Medeiros. Chefe político da região, sua casa estava sempre cheia de gente, eleitores ou emissários políticos, cada um com o seu pedido. O velho Vicente Rodrigues era um homem simples que recebia a todos e que costumava, no dia das eleições, reunir a peonada sob o galpão para recitar os nomes daqueles que deviam receber os seus votos. Em 1937, quando Getúlio instaurava o “Estado Novo”, João Goulart é ainda um rapaz: tem apenas dezenove anos de idade – e não votara ainda uma só vez. Só o fará anos depois, nas eleições de 1946 – ano que também marca a sua fulminante entrada na política.

O apartamento de João Goulart, na Av. Rainha Elizabeth, entre Copacabana e Ipanema, tem esse jeito comum a toda casa de solteiro.

Não há cozinheira, nem arrumadeira. O peão Jacinto encarregava-se de manter o apartamento numa ordem relativa, o que nem sempre consegue. Quando estive lá, manhã cedo, quis beber água e me apontaram uma geladeira, na cozinha: “Vá lá e se sirva”. Bananas velhas num armário, e a pia transborda de xicrinhas sujas de café, um mamão pela metade endurece na geladeira.

No escritório, uma biblioteca falha e eclética. Anoto os títulos de alguns livros: “História dos Sindicatos”, as obras completas de Shakespeare, a Mensagem presidencial de Café Filho, um “Lenine” , de David Shume, alguns volumes esparsos sobre legislação trabalhista. Na salinha da frente (todo o apartamento é nesse airoso estilo Tenreiro, tão comum agora), um pequeno bar onde se alinham duas garrafas de uísque, uma de licor “Strega” , duas de rum.

A parCr das primeiras horas da manhã, o apartamento se enche, e como as poltronas e cadeiras são poucas, muitos se sentam no chão, sobre almofadas. O secretário Eugênio Ferreira Caillard providencia cafezinho – mas ele mesmo tem de fazê-lo, ou então o próprio João Goulart.

Outros dados sobre o lado humano de Jango: almoça e janta em horas incertas, come de tudo, é dono de uma saúde de ferro, só fuma cigarro dos outros, tem horror à dor física, adora banana (na fronteira sul, banana é fruta rara), só viaja em avião cargueiro, de preferência à noite, vive eternamente com um “déficit” de sono, mas pode dormir de olhos abertos, o que faz quando ouve discurso comprido.”

“Não, eu não queria saber de política. Não tinha tempo para isso.

Meu pai deixou os negócios, lá na estância, muito complicados. Eu tinha que me enterrar no trabalho dia e noite, sem outras preocupações. Raramente vinha ao Rio. Aparecia sempre no Catete, mas com o Dr. Getúlio só tratava assuntos lá da fronteira: conversa sobre gado, trigo, arroz, coisas assim. De política, nada.”

“Mas quando o Dr. Getúlio foi deposto e retirou-se para Itu, a minha aproximação com ele, seu vizinho, fez-se maior, mais constante. Comecei, então, a ver de perto em que abandono o haviam deixado. Passavam meses e meses e lá não aparecia um só amigo. Horas inteiras, calado e cismarento, o Dr. Getúlio ficava na varanda, fumando o seu charuto, os olhos perdidos na planura que se estendia lá na frente, até a linha do horizonte. Muitas vezes o surpreendi assim, sozinho, calado, triste. Por onde andavam os amigos que ele tanto ajudara? Onde todos aqueles, milhares, que ele cumulara de favores, que, com sua ajuda, se tornaram ricos e poderosos? Não aparecia ninguém. “

“Um fato, de que ainda hoje me recordo, dá uma ideia precisa daquele abandono. Certa vez, ao entrar na estância de Itu, surpreendi num dos quartos, sob um móvel, uma camisa suja que ali fora deixada, certamente, para que a lavassem. No dia seguinte, viajei para Porto Alegre, onde fiquei algumas semanas. Quando voltei a visitar o Dr. Getúlio, e ao passar novamente pelo quarto, surpreendi a mesma camisa, sob o mesmo móvel. Ninguém (porque quase não havia ninguém) tivera o cuidado de recolhê-la e mandá-la à lavandeira”.

“Aquilo tudo foi me enchendo de revolta, decepção, nojo. Comecei a conversar sobre política com o Dr. Getúlio, virei político. Não havia nenhuma seção no PTB em São Borja: criei uma, comecei a fazer proselitismo em toda a região lindeira. Em meados de 1946, eu já havia fundado ali pela zona 27 diretórios do partido”.

“Foi, então, quando o Dr. Protásio Vargas, irmão do Dr. Getúlio, e que comandava o PSD da região, veio me convidar para ser deputado estadual na chapa pessedista. Não aceitei”. “Mas, você precisa me ajudar, Jango”, disse ele. Respondi: “Ajudo. Entro com as vacas para os churrascos do seu partido, mas não entro para o partido”. “Mas você fica do meu lado ou não fica?”. Ainda me lembro da minha resposta: “Fico com o PSD enquanto o PSD estiver com o Dr. Getúlio”. Logo depois surgiu a divergência Pasqualini-Valter Jobim, o PTB apoiando o primeiro e o PSD apoiando o segundo para a governança do Rio Grande do Sul. O Dr. Protásio Vargas me procurou novamente:

-Jango, desta vez o PSD vai lutar contra o Getúlio. Qual será sua posição? Respondi:

-Ora, Dr. Protásio, o senhor não devia nem me consultar. Fico do lado do Dr. Getúlio

-Quer dizer que vai ficar contra mim?

– Não vou ficar contra o senhor. Vou ficar onde o senhor me encontrou: do lado do Dr. Getúlio.

“De lá para cá as minhas relações com o Dr. Protásio se esfriaram, hoje mal nos cumprimentamos. Mas ele não devia ter feito o que fez. Foi o Dr. Getúlio que lhe deu todo o poder. No Estado Novo, era ele, Protásio, quem fazia e desfazia interventores, era ele o verdadeiro governante. Não podia ficar nunca contra o irmão. Mas ficou. A luta em São Borja, nas eleições de 46, foi muito dura. O Dr. Protásio lançou dois candidatos do município ao mandato na Assembleia estadual que eu também pleiteava. Derrotei os dois e me elegi folgadamente”.

Praticamente João Goulart não exerce o mandato para o qual fora eleito. É, agora, o homem de ligação entre Vargas, exilado na distante fronteira gaúcha, e os elementos políticos da capital. Estamos em começos de 46 – e João Goulart vai desempenhar a sua primeira missão política fora do Rio Grande do Sul.

23 de agosto, nove horas da noite, no Palácio do Catete. Getúlio interpela João Goulart pela terceira vez:

– Você ainda não viajou? E repete:

– Não se esqueça que, depois de mim, você é o mais visado. Tome um avião e vá embora. E não abra a carta que lhe dei antes de chegar ao Rio Grande.

Mas João Goulart sente que os acontecimentos se precipitam, não quer deixar o Rio. Para fugir às sucessivas interpelações de Getúlio, refugia-se no seu apartamento na Avenida Rainha Elizabeth, onde já encontra vários amigos. Conversam até às primeiras horas do dia 24. E quase dia quando Jango vai dormir. Mas às oito horas da manhã, Souza Naves telefona. Atende o jornalista Doutel de Andrade, dos “Associados”, que também passou a noite no apartamento. Era uma no`cia dramática: Getúlio Vargas acabava de suicidar-se. Doutel de Andrade entra no quarto de Jango, acorda-o:

– Prepara-te para uma má notícia.

– Que foi?

– Getúlio suicidou-se.

Jango abre os olhos, empalidece. A estupefação lhe tira a voz.

Veste-se devagar, calado. E antes de enfiar o paletó, vira-se para Doutel de Andrade e pergunta: “E agora, hein?” Mas no elevador, quando desce, o autodomínio afrouxa, e João Goulart cai num pranto solto. Só no meio da viagem é que se lembra da carta que Vargas lhe entregara na véspera. Abre-a: “Mais, uma vez as forças e os interesses contra o povo…”

(publicado originalmente em 1955)