SOBRE
O PROJETO
DORRIT
HARAZIM
JOSÉ
HAMILTON
ROSENTAL
CALMON
JOEL
SILVEIRA
Dorrit Harazim

O método Dorrit

“É no imprevisível que está a beleza do jornalismo. É esta a minha mensagem para a garotada que está começando a fazer um jornalismo resumindo os fatos para postar fotos nas redes sociais. Fui beneficiada por um jornalismo que, ao invés de resumir, permitia ampliar."

SOBRE Dorrit Harazim

Ir para uma entrevista sem conhecer o assunto, além de ineficiente, é descortês com o entrevistado, ensina Dorrit Harazim.

texto e vídeo Elvira Lobato / edição Maiá Menezes

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O processo de apuração de reportagens de Dorrit Harazim é comparável à preparação dos atletas dos jogos olímpicos que ela acompanhou de perto em dez olimpíadas. Ela se descola do universo pessoal e mergulha no que chama de ‘modo jornalista’, em que todos os neurônios se voltam para o trabalho. É um mergulho extenuante, porque Dorrit é obcecada pela perfeição, tanto em relação ao domínio do assunto, quanto à qualidade do texto e à veracidade das informações que leva ao leitor. Por duas vezes, em mais de cinquenta anos de carreira, ela colapsou por estafa no final da maratona.

Esse método poderia sugerir que se trata de uma jornalista fria. Mas, basta observar seus textos – e ouvi-la falando sobre o seu ofício – para constatar o contrário. Eles revelam grande admiração e respeito pelos humildes e anônimos que povoam algumas de suas reportagens mais espetaculares, como sobre as detentas do presídio feminino Talavera Bruce, no Rio de Janeiro, sobre as vendedoras de cosméticos da Amazônia e sobre o juiz negro vítima de injúria racial após expulsar um coronel branco de campo. O texto de Dorrit melhora com o passar do tempo e sua leitura é vital para os que querem aprimorar a apuração e a escrita.

Uma vez que a administração pública é falha, pouco funcional e muito corrupta, jovens jornalistas acham que é necessário fazer denúncias e descobrir escândalos para alavancar suas carreiras. Jornalismo
é a apuração detalhada e aprofundada

Reservada, não gosta de dar entrevistas e mantém-se fora das redes sociais. Considera que seu trabalho fala por si e tem aversão a qualquer coisa que pareça autopromoção. Esta entrevista só aconteceu – após um mês de negociação- por ser parte do projeto de memória do jornalismo da Abraji, que a homenageou em 2010. Zuenir Ventura, parceiro dela em vários projetos jornalísticos, resumiu em poucas palavras o estilo da homenageada: “Ela é minimalista, eu sou superlativo. Ela é lide, eu sou nariz de cera”.

Em sua fala na cerimônia da Abraji, Dorrit chamou a atenção para o excesso de denuncismo, que considera uma armadilha no jornalismo investigativo. “Uma vez que a administração pública é falha, pouco funcional e muito corrupta, jovens jornalistas acham que é necessário fazer denúncias e descobrir escândalos para alavancar suas carreiras. Jornalismo é a apuração detalhada e aprofundada”, afirmou para uma plateia lotada de jovens.

O escritório de Dorrit no bairro Bela Vista, em São Paulo, é elegante e simples como ela, que se mantém em boa forma, aos 81 anos, graças à prática regular do tênis. Fosse ela a entrevistadora, teria anotado informações sobre os objetos, fotos e livros expostos, porque seu método de trabalho inclui a observação dos mínimos detalhes de cada cena que descreve. Por isso, cada reportagem de Dorrit é um tecido sem furos.

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Jornalista por acaso

Nascida em 1943, em Zagreb, na antiga Iugoslávia (atual Croácia), emigrou para o Brasil aos cinco anos, com os pais e dois irmãos, em um navio de refugiados da Segunda Guerra Mundial. Viveu em Porto Alegre até concluir o ensino médio e retornou à Europa aos 17 anos para estudar línguas na Universidade de Heidelberg, na Alemanha. Concluiu os estudos em Paris, na Universidade de Sorbonne. Enquanto estudava, foi secretária na Aliança Francesa.

Certo dia, agentes de contra-espionagem da polícia Sûreté Nationale a buscaram no trabalho para um depoimento. Estavam à procura de um ex-namorado dela, acusado de terrorismo. Dorrit ignorava as atividades suspeitas e o paradeiro do rapaz, mas o fato de ele ter sido fichado pela polícia lhe custou o emprego. No mesmo dia, foi avisada de sua demissão pela Aliança Francesa. Com a ajuda de amigos, conseguiu um trabalho no departamento de pesquisa da revista semanal L’Express. Trabalhou, segundo ela própria, nas “catacumbas” do semanário: pesquisava e redigia textos requisitados pela redação, mas não se considerava redatora.

O acaso a levou para a linha de frente do jornalismo. Em fevereiro de 1968, o então presidente do Grupo Abril, Roberto Civita, e o jornalista Mino Carta visitaram a redação da L’Express e ela foi apresentada aos dois. A Abril preparava o lançamento da revista Veja. Eles ficaram encantados com a diversidade de línguas que Dorrit dominava e a convidaram para integrar o time, mas ela não cogitava deixar a Europa naquele momento. Alguns meses depois, no entanto, durante a onda de protestos que varreu a França em 1968, voltou a ser procurada por agentes da Sûreté Nationale. Como medo de ser presa, abraçou a ideia de Civita e desembarcou em São Paulo em outubro daquele ano. “Quando Mino me viu entrando na redação, abriu os braços e gritou: Dorita!!. Estava seguro de que eu viria”, relembra ela, nesta entrevista à Abraji.

© Agence France Presse – Creative Commons

No começo, tinha pouca familiaridade com a escrita em português. Em seu livro “Notícias do Planalto”, o jornalista Mario Sérgio Conti recorda que a primeira matéria dela para a Veja foi escrita numa mistura franco-lusitana, mas ela aprendeu rápido a redigir textos jornalísticos com o então editor de internacional José Roberto Guzzo. Já Mino Carta lhe deu uma dica inusitada sobre como uma jornalista deveria se comportar à época. “Nunca use sandálias, porque só uma em um milhão de mulheres tem pés bonitos”, recomendou.

Dois anos após ser admitida, tornou-se editora assistente da revista e foi enviada ao exterior para cobrir a guerra no Camboja, extensão do conflito do Vietnã. Tinha 27 anos e quase nenhuma experiência em reportagens. Mas fez bonito. Mino Carta elogiou o desempenho dela na seção de carta ao leitor:

“A tarefa de Dorrit, neste momento, não é fácil. Quinze correspondentes de guerra desapareceram desde o início das operações, a censura é rigorosa e qualquer passo fora da capital, Phnom-Penh, corre por conta e risco de quem o der. A guerra instalou-se por toda parte e ninguém sabe ao certo onde está o inimigo. Mas Dorrit, apesar do seu nome frágil, é uma moça imperturbável”

Ela relembra aquela cobertura no seu único livro “O Instante Certo” (editora Companhia das Letras, 2016) : “Engatinhando na carreira de repórter, fui catapultada para cobrir a Guerra do Vietnã e sua extensão clandestina no Camboja. (…) Vi-me caloura em meio aos veteranos naquele atoleiro (…) . A viagem de ida durou três dias, não existia internet, nem computador, câmara digital, iPhone ou Google. Num Brasil sob ditadura militar, tampouco cartão de crédito havia. Embarquei para o Vietnã com dinheiro vivo no bolso (…).” Trinta anos depois, voltou ao Camboja e recontou a história da destruição do país.

O Sheik de Abu Dhabi

Pode-se dizer que Dorrit começou no jornalismo por onde normalmente se encerram carreiras: pelas coberturas internacionais, que requerem maturidade e experiência profissional. Mas, sua pouca vivência era compensada pelo conhecimento do cenário internacional e de línguas, e pelo destemor próprio da juventude. Foi este motor que a levou ao Oriente Médio, em 1973, para uma reportagem sobre a crise do petróleo. Não se imaginava, naquela ocasião, uma mulher viajar sozinha pelos países árabes. Ela ficou cinco semanas no Oriente Médio e esteve em Dubai, Abu Dhabi, Qatar, Bahrein, Kuwait e Sharjah.

Daquela aventura, ela guarda na memória a entrevista com Sheik de Abu Dhabi, à meia-noite, no palácio dele, em pleno deserto. Temerosa do que poderia acontecer, convidou um jornalista para compartilhar a disputada oportunidade, imaginando que estaria mais protegida acompanhada de um homem. A visão do “baita palácio” no meio do nada, no escuro, a impactou. Mas a entrevista foi tranquila, sem incidentes. O sheik estava no comando do que queria dizer. E ela aprendeu que quanto maior o cargo de comando, menos surpreendentes são as respostas. Por isso, não tem interesse em entrevistar autoridades de nenhum governo.

A reportagem “O Petróleo e seus Senhores” foi publicada pela Veja, na edição de 11 de julho de 1973. Dois meses depois, ela estava no turbilhão do golpe militar chileno. Foi também o acaso que a colocou na cobertura da queda e morte do ex-presidente do Chile, Salvador Allende, no golpe militar liderado pelo general Augusto Pinochet, em 11 de setembro de 1973. Dorrit foi enviada ao país para cobrir uma reunião latino-americana da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), quando eclodiu o golpe. Rapidamente, entrou no “modo jornalista” e correu para a sede do governo, o Palácio de La Moneda, onde horas depois Allende acabaria morto. A reportagem mostra um trabalho minucioso de levantamento de dados, de prospecção de informações, de reconstituição de cenas e de diálogos que se tornaram a marca dela.

Ela inicia o texto com a reprodução de parte da conversa, por telefone, entre Allende e sua mulher, Tencha, às 7h40 da manhã, quando ele informa que a Marinha tinha se sublevado e que a situação era grave. Na sequência, reconstitui os passos dele de casa até o palácio, que seriam as suas últimas horas de vida:

“Desde o início, o dia não prometia nada de bom para Salvador Allende. Às 7 horas ele deixou sua casa no número 200 da rua Tomás Moro, o bairro de Las Condes, mas não conseguiu completar o trajeto até o Palácio de la Moneda no seu Fiat 600, placa BG-80: no meio do caminho, por razões de segurança, teve de trocar de condução, passando para um tanque preto e branco do Corpo de Carabineiros. A precaução, motivada por rumores de uma iminente rebelião na Marinha, logo se revelaria bem fundamentada. Às 7h30, 10 minutos após o seu marcial desembarque no palácio, Allende recebia a confirmação da notícia (…).Pouco depois das 8 horas, Allende faria sua última aparição em público. (…) de casaco esporte, sem gravata, ele deu um aceno para os poucos que estavam na praça e sumiu no interior do palácio, de onde só sairia morto”.

Dorrit teve uma relação longa, mas intermitente, com o Grupo Abril. A primeira etapa durou até 1986, quando ela deixou a Veja e assumiu a editoria de internacional do Jornal do Brasil. Ela continuou a fazer reportagens no exterior: cobriu a vitória de Jimmy Carter (1976), foi a Bonn investigar o acordo nuclear Brasil-Alemanha (1977), cobriu o escândalo Watergate (1975) e o apartheid na África do Sul.

Ela aprendeu com os próprios erros e apertos, como todo bom repórter. Habituada a gravar suas entrevistas e só anotar detalhes, viu-se numa enrascada fenomenal em Israel, em 1977, ao entrevistar o então Primeiro-Ministro, Shimon Peres. O gravador falhou e só captou a voz dela. Não houve tecnologia capaz de recuperar a voz do entrevistado. Ao ver o desespero de Dorrit, Peres concordou em recebê-la por dez minutos no dia seguinte.

Olimpíadas e Casamento real

Dorrit retornou à equipe da Veja no segundo semestre de 1979. Um ano depois, novamente o acaso a levou para a cobertura dos esportes olímpicos. Ela não tinha nenhuma experiência na cobertura esportiva, mas por sua especialização em política internacional foi escolhida para cobrir as Olimpíadas de Moscou, em 1980. Tratava-se não apenas de um grande evento esportivo, mas também político, porque os Estados Unidos e outros países boicotaram os jogos em protesto contra a invasão soviética no Afeganistão. Quatro anos depois, lá estava ela, em Los Angeles, cobrindo a segunda olimpíada, Fez o perfil do corredor Joaquim Cruz. Anos mais tarde, ele abriria as portas para ela para outra grande reportagem, sobre os mutilados de guerra.

O evento jornalístico de maior audiência em 1981 foi o casamento real do príncipe Charles com a jovem Diana Spencer. Dorrit estava entre os milhares de jornalistas credenciados. A reportagem que ela produziu para a revista Veja é exemplar pela extensão da pesquisa que fez sobre os rituais e as infinitas regras de comportamento que envolvem a família real britânica. Ela produziu um divertido relato das gafes e dos contratempos dos convidados ilustres.

© Provincial Archives of Alberta – Creative Commons

O presidente da Gâmbia foi derrubado por um golpe de Estado em seu país, enquanto assistia compenetrado à cerimônia. A primeira-dama dos EUA, Nancy Reagan, chamou a atenção por sua segurança ostensiva e gigantesca, que destoava da discreta segurança da família real. A jovem esposa do príncipe coroado da Jordânia feriu as regras do figurino real por estar sem chapéu. François Mitterrand vestia terno quando o protocolo determinava o fraque. E a rainha Elizabeth II se chateou porque seu velho amigo Aga Khan, dono de uma fortuna de 500 milhões de libras, não foi incluído na lista de convidados. Foi um trabalho tão extenuante que Dorrit teve uma estafa antes de terminar de escrever. Quem concluiu o texto foi o editor José Roberto Guzzo, com as informações que tinha apurado.

Em 1988, depois de cobrir as Olimpíadas de Seul (Coreia do Sul), ela e o marido, Elio Gaspari, mudaram-se para os Estados Unidos: ele como correspondente da Veja e ela como chefe do escritório do grupo Abril em Nova York. Isso não a impediu de cobrir as Olimpíadas de Barcelona, em 1992. No ano seguinte ela voltou para o Brasil, como repórter especial da revista.

A guinada de Dorrit

Dorrit estava com 50 anos quando retornou a São Paulo. Tinha passado cinco anos fora, e voltou a enxergar o país com o olhar surpreso dos estrangeiros. Viu mudanças na sociedade e pautas para matérias que os jornalistas locais não percebiam por estarem habituados à realidade. Começou ali um novo ciclo profissional para ela. A jornalista dos grandes eventos internacionais decidiu que as histórias mais relevantes eram as das pessoas anônimas e foi ouví-las nas periferias, nos cárceres, nas ruas e no interior do país.

“A volta ao Brasil me permitiu ver que eu estava completamente descolada das questões centrais do jornalismo brasileiro. Fiquei com olhar mais agudo. Na primeira semana, percebi o pânico da classe média com o pobre. (…)Notei que os vidros dos carros estavam pretos, e o pânico com os meninos que vendiam chiclete no trânsito. Vi um balde de assuntos que não estavam na pauta da revista. (ter percebido) Isso me deu alegrias enormes (…)”.

O terceiro ciclo de Dorrit na Veja durou sete anos e foi até 2000. A principal reportagem desta fase é “Mulher, Crime e Castigo”, publicada pela Veja em 7 de junho de 1995, e que deu a ela o Prêmio Esso de Reportagem. Dorrit recebeu quatro prêmios Esso ao longo de sua carreira, além dos internacionais, como o Prêmio de Jornalismo Maria Moors Cabot, da Universidade de Columbia, em 2017, e o prêmio de reconhecimento à excelência da Fundação Gabriel Garcia Marquez para o Novo Periodismo (FNPI), em 2015. Para retratar o universo das presas, Dorrit passou uma semana no presídio feminino Talavera Bruce, no Rio de Janeiro. Dormiu nas celas e comeu a mesma comida servida a elas.

Outra reportagem importante daquele período é “A Globalização de Dona Pureza”, publicada na edição da Veja de 12 de novembro de 1997, sobre a maranhense Pureza Lopes Loiola, viúva, mãe de cinco filhos, que partiu em sua busca do filho de 18 anos, vítima de trabalho análogo a escravo. Ela só voltou para sua cidade, Bacabal (interior do Maranhão), depois de recuperar o filho. Indicada pela CPT (Comissão Pastoral da Terra), Pureza ganhou o prêmio Anti-Slavery International e viajou à Europa, só com uma sacolinha de mão como bagagem, para receber a homenagem.

Encontro com Moreira Salles

Em 1998, dois anos antes de deixar a revista Veja, Dorrit conheceu o documentarista João Moreira Salles que a entrevistou para uma série sobre futebol. A relação entre os dois se ampliou e ele a convidou para participar de documentários sobre o Brasil. Ela fez os argumentos e codirigiu dois filmes: “A Família Braz”, com Artur Fontes, e “Passageiros”, com Izabel Jaguaribe. Em A Família Braz, Dorrit e Fontes acompanharam o dia a dia de uma típica família da periferia de São Paulo. Já “Passageiros” registra o retorno de 34 nordestinos de São Paulo para sua cidade natal, no interior do Piaui.

Ela gosta do desafio e embarca em outro projeto de documentários com a Videofilmes: Travessia no Escuro (sobre analfabetos aprendendo a ler);Travessia do Tempo (sobre um preso que cumpre pena no Carandiru), Travessia do Silêncio (sobre um jovem casal que espera um filho surdo), Travessia da Vida ( sobre Zilda Arns e a Pastoral da Criança) e Travessia do Ar (sobre a rotina de atletas da ginástica olímpica) e Travessia da Dor (sobre dois nadadores em busca de uma vaga nos jogos olímpicos de Atenas).

Após sair da Veja, Dorrit experimentou o jornalismo digital: um site chamado NO (Notícias e Opinião), junto com Zuenir Ventura, Marcos Sá Correa, Vilas-Boas Correa, Ricardo Setti e Mário Sérgio Cotti. Foi um voo curto. Só durou seis meses, mas permitiu a Dorrit fazer uma brilhante cobertura sobre o atentado terrorista às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001. Ela tinha acabado de chegar a Nova York para visitar a filha, que morava com duas colegas de faculdade. Dorrit estava de férias e entrou “no modo jornalista” para dar conta da emergência. As reportagens sobre o atentado foram publicadas no Jornal do Brasil e no NO.

“Aquele foi o único episódio em que eu tateei muito até encontrar o tom certo, porque as coleguinhas que dividiam o apartamento com minha filha entraram em pânico. Assumi também a responsabilidade sobre as duas, que não conseguiam falar com os pais. Eu tinha três adolescentes que me viam como a adulta, no meio de um caos. Refleti muito sobre isto posteriormente porque nunca mais me vi tão dividida”.

Revista Piauí

A parceria com João Salles evoluiu para criação da revista mensal Piauí. Marcos Sá Correa e Mário Sérgio Conti integravam o time fundador. A primeira edição, lançada em outubro de 2006, trouxe uma reportagem de Dorrit : “O Coronel Morreu Antes”, sobre o assassinato do temido coronel Ubiratan Guimarães, que comandou o “Massacre do Carandiru”, em 1992, quando 111 detentos do presídio do Carandiru, em São Paulo, foram mortos pela guarnição policial que ele chefiava. Eis como Dorrit relatou a morte do temido coronel, encontrado nu, enrolado numa toalha de banho, com um tiro na barriga:

“(…) Morreu sem chance de defesa ou revide e, segundo apontam as investigações, alvejado pela própria namorada, 23 anos mais nova. Foi uma morte chinfrim para quem chefiou a temida Rota, a unidade mais truculenta da polícia paulista”.

O universo dos atletas de alta performance rendeu várias reportagens históricas de Dorrit Harazim. Ela não mediu esforços para captar os medos, sonhos, esperanças e frustrações deles durante a preparação para os jogos olímpicos. Ela acompanhou os entrevistados por meses a fio antes de escrever e leu pilhas de livros sobre física e medicina. Para melhor entender a relação de César Cielo com a água, Dorrit vestiu o body usado por ele nas competições para experimentar a sensação causada pela roupa especial dos nadadores olímpicos. A reportagem de Dorrit, publicada na Piauí em junho de 2008, foi premonitória: No mês seguinte, nas Olimpíadas de Pequim, Cielo ganhou medalha de ouro nos 50m livres e de bronze nos 100m livres.

Ela usou expediente parecido para fazer o perfil da atleta de salto com vara Fabiana Murer, que foi publicado pela Piauí em 2012, a um mês das Olimpíadas de Londres, que ela também cobriu. Dorrit conviveu com Fabiana por várias semanas, mas só se sentiu efetivamente preparada para escrever o texto depois que segurou a vara usada pela atleta. Eis como ela iniciou seu texto:

“Tente levantar uma vara de mais de 4,5 metros de comprimento, empunhando-a por apenas uma das extremidades. Depois a mantenha apontada para o alto em linha reta com o corpo, sem balançar. Nesta posição, inicie uma corrida de 37 metros em dezoito passadas, erguendo o joelho a 90 graus do solo. Na troca de cada passada, mantenha o seu dorso, com a tíbia em ângulo reto, quase como o encosto, assento e pernas de uma cadeira. Tudo isso numa velocidade de mais de 8 metros por segundo e com a danada da vara sustentada acima da cabeça. Durante a corrida, comece a apontá-la para um encaixe de aço situado ao final da pista. Finque-a tal qual uma lança, com precisão”.

Para falar de novo sobre a Guerra do Vietnã, decidi ver o que é um soldado de guerra ‘a vero’. Retratei um sobrevivente da guerra do Iraque, mas isso não importa. Um mutilado de guerra é universal: pode ser vietnamita, americano ou argelino

Dorrit foi editora da Piauí até a edição 72, em setembro de 2012. Uma das características da revista é a apuração detalhada, sem pressa, o que casava perfeitamente com o perfil dela. O resultado foram vários textos primorosos, como “O Mutilado”, publicado em setembro de 2007. Na entrevista à Abraji, Dorrit detalhou a apuração da reportagem, que ela encarou como um ajuste com contas pessoal pela cobertura da Guerra do Vietnã que fizera no começo da carreira.

“Para falar de novo sobre a Guerra do Vietnã, decidi ver o que é um soldado de guerra ‘a vero’. Retratei um sobrevivente da guerra do Iraque, mas isso não importa. Um mutilado de guerra é universal: pode ser vietnamita, americano ou argelino. “

Dorrit começou a escrever como colaboradora para o jornal O Globo quando ainda estava na Piauí e acumulou o trabalho nos dois veículos durante seis anos. Cobriu pelo Globo as Olimpíadas de Atenas, Pequim, Londres e do Rio de Janeiro. Em 2005, ela voltou ao Camboja, a serviço do jornal carioca, para a série de reportagens “Agonia de um Povo”, sobre os anos de horror do regime do Khmer Vermelho. Desde 2016, Dorrit assina uma coluna semanal de opinião no jornal.

Você não precisa usar todo o conhecimento que adquiriu sobre o assunto, mas precisa ter essa segurança.
Você não precisa usar todo o conhecimento que adquiriu sobre o assunto, mas precisa ter essa segurança.
Dorrit Harazim
ENTREVISTA

Na entrevista a seguir, Dorrit reflete sobre os desafios do jornalismo, revive a apuração de várias reportagens e dá dicas de como melhorar o texto e a apuração. Uma delas, é estudar o assunto antes de fazer entrevista. “Você não pode entrevistar ninguém sem saber muito sobre o assunto, porque inclusive é descortês, deselegante e ineficiente chegar sem saber mais do que o entrevistado pensa que você sabe. Você não precisa usar todo o conhecimento que adquiriu sobre o assunto, mas precisa ter essa segurança”.

 

Abraji: Como você despertou para o jornalismo?

Dorrit: O fator determinante foi ser imigrante. Desde pequena aprendi a ouvir para tentar entender, porque eu não conhecia a língua, a cultura, os modos e a maneira de viver dos brasileiros. Como imigrante, você aprende a olhar, a observar, a ter paciência até ter certeza de determinadas coisas. Isso parece pouco, mas é muito para determinado tipo de reportagem. Me tornei uma jornalista singular pelo meu antigo fascínio por língua, pela palavra.

 

Abraji: Isso é perceptível na forma como você tece o texto. Percebe-se que você é completamente apaixonada pela palavra.

Dorrit: Sou. Esse polo – língua, ouvido e música- associado à capacidade de não ter pressa de entrar num assunto, adquiri como imigrante. Até hoje, observo coisas no Brasil que são naturais para quem é brasileiro. Por mais que eu esteja inteiramente, afetivamente, amorosamente inserida no Brasil, sei que não sou brasileira. Não fiz faculdade de jornalismo. Não me vejo como jornalista até hoje. Sei por que me infiltrei no jornalismo, sei o que ele me deu, o que eu tenho de qualidades e o que busco. Não considero jornalismo vocação. Aliás eu não considero o jornalismo uma profissão que exija uma formação prévia. O historiador que tenha atributos outros pode vir a ser um bom jornalista. Um médico desencantado com os rumos da profissão pode se tornar um extraordinário jornalista de ciência.

 

Abraji: Sua forma de trabalho requer tempo de apuração. Mas é possível exercitar esse jornalismo na cobertura diária de um grande evento repentino, de uma catástrofe?

Dorrit: Eu estava de férias em Nova York, quando ocorreu o atentado às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001. Também estava em Santiago, por acaso, quando ocorreu o golpe que derrubou Allende (11 de setembro de 1973). Adquiri a capacidade de mobilizar todos os neurônios de uma hora para outra diante do fim do mundo. A nossa profissão é tão insana que consideramos sorte estar numa matança monumental ou na destruição de um país.

 

Abraji: Como foi cobrir o atentado às Torres Gêmeas?

Dorrit: Minha filha estudava na New York University. Eu havia chegado dois dias antes, e estava hospedada no apartamentinho que ela dividia com duas colegas. Liguei a televisão pela manhã e vi o avião entrando na primeira torre. No que veio o segundo avião, entrei em outra órbita. Liguei o piloto automático. Nem tinha levado computador. Foi o trabalho mais difícil da minha carreira porque, pela primeira vez, virei jornalista com uma filha por perto, que precisava de mim. Em todas as reportagens mais complicadas e certamente mais perigosas, bem como nas dez olimpíadas que cobri, eu estava na bolha de jornalismo, na esfera do modo jornalista. Aquele foi o único episódio em que eu tateei muito até encontrar o tom certo porque as duas coleguinhas de universidade (uma de Califórnia e outra do Texas) que dividiam o apartamento com ela entraram em pânico. Eu tinha três adolescentes que me viam como a adulta no pedaço, no meio de um caos. Refleti muito sobre isto posteriormente porque nunca mais me vi tão dividida.

 

Abraji: Diante de um cenário tão vasto, com tantas coisas acontecendo simultaneamente, como priorizar as informações, como fechar um quadro de apuração e saber o que se está deixando de fora?

Dorrit: Tive esse aprendizado na cobertura das olimpíadas. Enquanto você assiste a um jogo de vôlei, por exemplo, chega informação sobre uma corrida dos 100 metros em um estádio a três quilômetros de distância. Você aposta previamente no que julga que vai render e se prepara para cobrir aquele assunto. Se quiser cobrir tudo, obviamente não vai dar. Cobri dez olimpíadas. Às vezes sozinha, como em 1980. Outras vezes chefiando uma equipe. Você não pode deixar o universo te acachapar. É preciso amadurecer o suficiente para convencer o editor que está na outra ponta de que ele deve apostar em um assunto. Desta forma, você chega a um resultado mais autoral, que tem boa chance de não aparecer na concorrência.

 

Abraji: Em 2012, você fez o perfil da atleta Fabiana Murer, que disputou o salto com vara na olimpíada daquele ano. O que impressiona na reportagem, publicada pela Piauí um mês antes dos jogos, é o detalhamento das informações científicas sobre o esporte e sobre a atleta. Com certeza a apuração foi feita com muita antecedência.

Dorrit: Sim. Escolhi Fabiana Murer porque ela estava com excelente desempenho e porque, a meu juízo, o salto com vara é, dentre todos os esportes olímpicos, o mais bonito. Eu preciso me seduzir para investir em um assunto. Não escolheria algo que não me atraísse, ou que me deixasse neutra. Sempre achei o salto com vara absolutamente potente em todos os sentidos. Exige corrida, potência, salto, força. Eu não sabia nada sobre saltos. Só os observava. Ao me propor a fazer o perfil da Fabiana, precisei ler muito antes. A leitura é tão essencial que é o básico. Estamos entendidos que você não pode entrevistar ninguém sem saber muito sobre o assunto, porque inclusive é descortês, deselegante e ineficiente chegar sem saber mais do que o entrevistado pensa que você sabe. Você não precisa usar todo o conhecimento que adquiriu, mas precisa ter essa segurança até em respeito à pessoa que você vai entrevistar.

 

Abraji: Como foi seu processo de aprendizado para aquela reportagem?

Dorrit: Comecei da maneira mais primitiva, lendo um tratado sobre a física, sobre como o organismo é exigido. Depois passei algumas semanas com ela. Pedi que me desse uma aula sobre como saltar e quando segurei a vara nas mãos, o tamanho da dificuldade ficou real, o que me deu mais segurança para escrever. Atletas de elite, de excelência olímpica, são particularmente desinteressantes se você os aborda pouco antes da olímpiada, porque estão tão focados, cada um no seu nicho, que você não consegue chegar perto deles. Usei a mesma estratégia com o César Cielo, da natação. No primeiro contato, eu o convidei a falar sobre a água. Não adianta se aproximar do atleta naquele momento e perguntar sobre a infância dele. Por aí não dá certo. É preciso entender que eles estão no universo próprio. Não vão sair da bolha de concentração. Esse é um trabalho prévio a ser feito: pensar em como chegar no atleta.

 

Abraji: Significa que as matérias têm de ser pensadas com muita antecedência?

Dorrit : Com muita antecedência, sem dúvida nenhuma. E prefiro entrar em assuntos que eu desconheço, que me obriguem a fazer o trabalho do início, porque me habilita a explicar melhor para o leitor.

 

Abraji: Sua reportagem sobre o mutilado de guerra, publicado na Piauí, revela seu fascínio com o avanço tecnológico na medicina. Existe nela até um certo otimismo, quando, ao visitar a enfermaria, você destaca a figura de uma bebê vestida de rosa ao lado do pai no leito, como se dissesse que a vida ressurge. Como foi a construção daquela reportagem?

Dorrit : A reportagem foi um acerto de contas que fiz comigo mesma por minha cobertura das guerras do Vietnã e Camboja, quando eu era muito jovem e sem experiência. Eu era uma pós-adolescente quando fui jogada naquele cenário. Assisti à destruição do Camboja e até cobri aquilo razoavelmente. Trinta anos depois, voltei lá e fiz uma série para a Veja. Me senti habilitada a recontar e a dizer o que tinha acontecido. Ficou muito bom. Para falar de novo na guerra do Vietnã decidi ver o que é um soldado de guerra, “a vero”. Retratei um sobrevivente da guerra do Iraque, mas isso não importa. Um mutilado de guerra é universal: pode ser vietnamita, americano, francês ou argelino. A reportagem do mutilado foi uma das mais difíceis da minha carreira, por vários motivos. A primeira foi conseguir as entrevistas sendo repórter de um veículo desconhecido para eles. Pedi ajuda ao Joaquim Cruz, que era técnico da seleção para paraolímpica americana, para encontrar um atleta que tivesse servido na guerra. Joaquim me disse que havia um sujeito muito enrustido, que já não fazia parte da equipe, com uma história dura, e me autorizou a usar o nome dele para fazer o contato. Peguei o avião para os Estados Unidos a seco (sem garantia de obter a entrevista) mas sabia que ia dar certo.

 

Abraji: Como abordou o mutilado?

Dorrit:. Usei minha experiência do Vietnã como uma forma de entrar no assunto e de estabelecer um elo de comunicação. Pouco a pouco, ele foi se abrindo. Nossa conversa durou o dia inteiro. Ele me explicou o tratamento que tinha feito no Hospital Militar Nacional Walter Reed, que fica em Maryland, perto de Whashington, o que me levou a visitar ao hospital. Contatei o hospital por telefone. Mandei um ofício para a assessoria de imprensa explicando quem eu era, que havia coberto a guerra do Vietnã e que tinha feito uma longa entrevista com um soldado que passara pela reabilitação, e estava muito interessada em conhecer os tratamentos. Passei dois ou três dias conhecendo as várias estratégias do hospital para tratar os soldados que chegavam estropiados das guerras.

 

Abraji: Você ficou fascinada pela tecnologia?

Dorrit: Totalmente!. O avanço de todas as ciências e da medicina no tratamento de soldados desde a primeira guerra mundial dá saltos. A penicilina só existe porque houve guerra.

 

Abraji: Para enxergar pontos positivos ao falar de mutilados é preciso ampliar o olhar para além da dor e dos dramas?

Dorrit: É preciso se deixar surpreender, se abrir para outros elementos, porque senão o perfil fica de uma cor só. Fica menos interessante e menos instrutivo também. Eu aprendi muito naquela reportagem. E sempre que eu aprendo coisas para escrever, o leitor capta o que eu aprendi.

 

Abraji: Você descreve a explosão no deserto que mutilou o soldado e transporta o leitor para o momento do acidente. É possível sentir a textura da areia do deserto no seu relato. Para reconstituir os fatos com tantos detalhes é preciso revolver as minúcias com o entrevistado. Deve ser uma garimpagem muito difícil.

Dorrit: Sim, porque você não pode avançar demais. Nas primeiras horas da entrevista, ele estava sentado na cadeira, com as cortinas fechadas. Eu lhe pedi para me mostrar algumas lembranças dos colegas do Walter Reed, e ele decidiu colocar as próteses e se movimentar pela casa. Eu não sabia como agir. É um momento de sensibilidade fina. Quando se levantou, abriu a cortina e entrou a claridade natural no ambiente, eu entendi que ele estava à vontade. Aquele gesto sinalizou que ele se deixava ver. Cada entrevistado tem sua peculiaridade. Se ele topou dar a entrevista, vá devagar. Agi assim com os Rolling Stones e eles me entregaram mais do que eu jamais imaginaria. Eles fariam sua primeira apresentação no Brasil (janeiro de 1995) e fui entrevistá-los no México, para uma reportagem de capa da revista Veja. Cheguei três dias antes e fui avisada de que teria sete minutos com cada um deles. Pensei: Não adianta quebrar a cabeça. Seja o que Deus quiser. Decidi visitar as pirâmides que ficam próximas da cidade do México. Quando estava voltando, vi chegarem três carros com batedores e intuí que eram eles. Retornei e os acompanhei à distância. Sou orgulhosa disso até hoje. Acho engraçado que três deles tiveram a mesma ideia de visitar as pirâmides. Minha entrevista seria à noite, e fui vestida de inglesa. Morei na Inglaterra tempo suficiente para saber que tem coisas que até para os roqueiros são importantes. O primeiro entrevistado era o baterista Keith Richards, que normalmente não fala. Citei que eu os tinha visto nas pirâmides. Ele perguntou: você estava lá e não veio falar com a gente? Respondi que estava vendo as pirâmides, como eles. Foi nosso ponto de conexão.

 

Abraji: Você começou a carreira fazendo coberturas internacionais e anos mais tarde, já madura, voltou-se para o básico, para o cotidiano das pessoas simples e anônimas. Dormiu por oito dias no presídio feminino Talavera Bruce (Rio de Janeiro) para escrever a reportagem “Mulher, Crime e Castigo”, escreveu sobre os alcoólicos anônimos, sobre as vendedoras de cosméticos. Voltou seu olhar para os humildes, o que exige uma delicadeza diferente.

Dorrit: Em geral, se considera que fazer reportagens internacionais é o mais cobiçado na nossa profissão. Eu fiz o caminho oposto. O que me fez focar nesse Brasil foi ter morado cinco anos em Nova York quando chefiei o escritório das revistas do grupo Abril. A volta me permitiu observar a nossa classe média e ver que o jornalismo que eu estava acostumada a fazer estava completamente descolado das questões centrais do jornalismo brasileiro. Fiquei com olhar mais agudo. Na primeira semana, percebi que o pânico da classe média com o pobre. Notei que os vidros dos carros estavam pretos, e o pânico dos motoristas com os meninos que vendiam chiclete no trânsito. Vi um balde de assuntos que não estavam na pauta da revista. Quanto mais eu cobria o Brasil, mais eu me sentia confortável de ir às periferias. Isso me deu alegrias enormes. Colegas me diziam para não ir ao Jardim Ângela (bairro pobre da periferia de São Paulo) e eu dizia: eu vou. Quando você se sente segura, o local se desarma. Não sou boba. Não vou a periferia como turista. Sei abordar as pessoas.

 

Abraji: Em certas periferias dominadas pelo tráfico ou pela milícia a insegurança é maior do que na guerra convencional, porque a guerra tem regras. Como você programa suas incursões nessas regiões?

Dorrit: Fiz alguns documentários nessas áreas. Sempre ia sozinha, antes da equipe de filmagem. É preciso ter algumas referências. Todas as periferias de São Paulo têm associação de moradores e igrejas. Você começa com o padre, por exemplo. Estive em Brasilândia, para localizar famílias com um perfil específico (para o documentário Família Braz). Procurei um padre. Na primeira conversa, entrou alguém na igreja e começamos a conversar. Fiz o mapeamento através das pessoas que encontrei.

 

Abraji: Conte-nos como surgiu a reportagem “O Vermelho e o Negro” (publicada em O Globo, em 2016), que denuncia o racismo em um jogo de futebol no Clube Militar de São Paulo. O juiz negro expulsou um coronel branco e foi injuriado por ele em campo.

Dorrit: Soube do episódio durante uma aula de fisioterapia. Meu professor contou que tinha jogado futebol no clube dos oficiais da PM na semana anterior e que o juiz negro levou uma saraivada por ter expulsado um coronel do campo. Perguntei o nome do juiz, e ele me disse. Pedi o endereço dele e fui atrás da história. O juiz estava apavorado, massacrado, e com toda razão. Morava em uma maloca. Era de uma família humilde. À medida em que me interessei pelo caso, ele foi reerguendo também. Alguém se interessava por ele.

 

Abraji: Quando procurou o juiz, já sabia que o coronel tinha sido da Rota e que esteve envolvido no massacre do Carandiru (invasão do presidio Carandiru, que resultou na morte de 111 detentos, em 1992)?

Dorrit: Não sabia. E é no imprevisível que está a beleza do jornalismo. É esta a minha mensagem para a garotada que está começando a fazer um jornalismo resumindo os fatos para postar fotos nas redes sociais. Fui beneficiada por um jornalismo que, ao invés de resumir, permitia ampliar. A chefia está matando a reportagem. Tenho a impressão de que as chefias de editorias hoje lançam o repórter para uma coisa definida e ele parece um atleta olímpico. Ele vai conseguir o objetivo e volta correndo porque tem os desdobramentos daquilo que foi destinado a fazer. O repórter não olha para o lado. O tempo do repórter hoje é desumano, não lhe permite sequer parar para pensar. Não há muita boa notícia nesse sentido, a meu ver. A alternativa é ser repórter especial. Por que especial? Repórter é repórter. A meu ver, o repórter está menos prestigiado na imprensa convencional porque as autoridades preferem falar para notas de colunistas, porque são curtas de ler. Dizem o que querem passar e o noticiário fica em segundo plano. O repórter dificilmente tem o mesmo prestígio que um colunista que, no fundo, só assina a opinião dele. Eu não considero o colunismo jornalismo. Eu sempre brinco, mas não é brincadeira. Hoje, aos 81 anos, eu faço coluna. Mas isso não é jornalismo.

 

Abraji: O que é jornalismo?

Dorrit: Eu sabia que essa pergunta viria. É apurar o que você não sabe e retratar da forma mais próxima da verdade o que você foi capaz de apurar. Nunca chegará a 100% da verdade. Há um limite, que está se tornando cada vez mais difícil.

 

Abraji: Ao ler suas matérias, em série, a gente nota uma aproximação com o tempo da literatura por conta de sua paixão pela língua. Esse tempo da literatura não está dentro do jornalismo atual.

Dorrit: Não, mas o produto final -jornal, a revista ou a mídia seja ela qual for – abriga este tipo de escrita. Eu gosto de escrever de forma a que o leitor forme uma opinião. Não gosto de opinar. A minha opinião importa pouco, porque já está embutida nos exemplos que eu dou, nas citações que eu busco em autores, escritores, pintores ou em outras artes. O conjunto de uma coluna, quero crer, traz alguma coisa além do jornalismo.

 

Abraji: Joel Silveira dizia que o repórter é uma coisinha investigativa, porque o que importa é a notícia, não o jornalista. Mas vivemos um momento em que o jornalista corre atrás de visualizações, precisa se promover, como se fosse tão importante quanto a notícia.

Dorrit: Sou de outra escola. Não preciso me colocar. O que penso e retransmito me representa. Vou dar um exemplo. Quando fui aos Emirados Árabes, em 1972, não havia ocidentais lá. Mulher desacompanhada, menos ainda. Era o começo da guerra do petróleo. Eu queria falar com o Sheik de Abu Dhabi, e percebi que o ministro de economia e o de minas eram formados na Inglaterra, tinham PHD. Eu estava no hotel quando chegou uma equipe de três rapazes de uma TV espanhola, doidos por uma entrevista com Sheik. O ministro da Economia me avisou que o Sheik iria me receber no palácio de inverno, à meia noite. Eu estava tão sozinha naquela expedição que propus levar um dos jornalistas espanhóis comigo, como se fosse meu fotógrafo, imaginando ter uma certa garantia de segurança. À meia noite veio um carro e me levou ao palácio, no deserto. Não havia luz em volta. No meio do breu, um baita palácio. Eu não tinha ideia do que iria acontecer. Deu tudo perfeito. O Sheik estava no comando do que ele queria dizer. Quanto mais alta a autoridade, menos surpreendentes as respostas.

 

Abraji: As autoridades e as celebridades não te encantam?

Dorrit: Zero. E não é por arrogância. Com uma autoridade, bem ou mal, o jornalista detém a palavra final. Então é uma relação de poder bastante semelhante. Bem ou mal você tem um poder que ele não tem, que é o da palavra final. Seja para eliminar alguma coisa que ele tenha dito, seja por eventualmente acrescentar uma informação ou opinião que ele talvez não queira. Então é uma relação de poder mais ou menos próxima. Com o homem simples é extraordinário, porque você não tem ideia do que ele vai te contar. Você vai fazer perguntas sobre um assunto que será novo para o leitor. A maneira dele falar já compõe um quadro enquanto todas as autoridades tendem a usar a linguagem oficial. Então a expectativa de uma conversa com uma pessoa sem autoridade, sem perfil para defender, é mais inteligente e mais produtiva.

 

Abraji: Gostaríamos de comentar a reportagem sobre o casamento do príncipe Charles com a Lady Di, em que você se concentrou nos convidados estrangeiros. É um texto muito bem-humorado, mas você teve uma estafa no final por excesso de trabalho.

Dorrit : Nesses anos de profissão, eu preguei em duas coberturas: numa olimpíada e no casamento real. O desafio de uma cobertura solitária de tamanha proporção, e com tantos ângulos possíveis, era escrever o essencial com background para situar o leitor no contexto. E havia uma dificuldade adicional: os textos, naquela época, eram enviados para as redações por telex. A Inglaterra obrigou os mais de 5 mil jornalistas estrangeiros a recorrer à central de telex que empregou cem veteranos jornalistas da Segunda Guerra Mundial aposentados, como uma espécie de ajuda social e de reconhecimento tardio da profissão. Então eram cem idosos como eu sou hoje, apenas mais caquéticos, que foram tirados da aposentadoria para atender uma malta de jornalistas impacientes. Quando você está com pressa e o fechamento te azucrina, você vira bicho. Eram cinco mil bichos separados por uma bancada, e os velhinhos datilografando os textos. Eles não tinham a menor pressa. Eu via aquilo se acumular e a minha vez não chegava. Fui tomada de um cansaço monumental, por acúmulo de saber de detalhes sobre o evento maior do que eu consegui digerir. Nunca reli a matéria. Não pode ter saído leve, porque eu estava um caco.

 

Abraji: Por que optou pelos convidados como o centro da cobertura?

Dorrit: O casamento foi transmitido pela televisão e repassado inúmeras vezes. Uma reportagem de capa não podia repetir o que todos já tinham visto. A decisão de focar nos convidados só foi tomada depois do casamento, porque poderia não ter acontecido nada de singular ou de saboroso com os convidados daquela pompa e circunstância. O segredo foi chegar para a cobertura muito bem informada e com cabedal de conhecimento do ritual suficiente para perceber as coisas erradas. Mas só a realidade vai te ajudar a escolher o caminho final, sem receio de não cobrir a totalidade dos fatos. É preciso se assegurar de que se te surpreendeu, provavelmente será relevante para o leitor. O jornalista tem de ir de peito aberto. O filtro se estabelece fundamentado no seu conhecimento e em saber o que está jogando fora.

 

Abraji: É tarefa, portanto, para um repórter mais maduro?

Dorrit: Mais maduro. Não é para iniciante. Se não você conhece muito um assunto, tende a usar citações e, por isso, os jornais estão tão tediosos. Se convencionou na cobertura do poder econômico e político que conseguir uma aspa da autoridade substitui a necessidade de apurar o fato. E as chefias dos jornais são lenientes com isso. Uma declaração do Haddad (Ministro da Fazenda Fernando Haddad) repetida em 400 veículos, só porque ele falou, diminui o jornalismo. Vale a pena pensar: se não tiver as aspas, a informação fica de pé? Mas, as chefias se contentam com elas. Isso é devastador.

 

Abraji: Você quase não usa aspas nos textos.

Dorrit: Não.

 

Abraji: Como registra as falas? Anota tudo? grava?

Dorrit: Anoto e gravo. Em uma eleição em Israel, entrevistei o então primeiro ministro Shimon Peres e quando voltei para o hotel me dei conta de que só a minha voz tinha sido gravada . O gravador pifou numa situação dramática de fechamento. Fui a uma rádio de Israel que tinha equipamentos de degravação que também não conseguia recuperar a voz dele. Humildemente e morrendo de vergonha, telefonei para a residência do primeiro-ministro. Em Israel, as autoridades atendem ao telefone. Ele disse que não havia a menor condição de me atender. Eu estava em Tel Aviv. Não dormi naquela noite. Peguei o primeiro ônibus para Jerusalém, onde ele teria uma última reunião antes da eleição. Quando o sujeito me viu, ficou com tanta pena que me deu dez minutos de entrevista. Essas falhas paralisam o coração. Eu deveria ter aprendido a confiar na minha memória, mas não confio porque ela é particularmente curta para um jornalista. Eu anoto não a fala, mas o que tem no ambiente da entrevista: os quadros nas paredes, o tipo de meia do entrevistado. Memória é um privilégio, um dom, uma ferramenta magnífica.

 

Abraji: Que conselho você daria a um jornalista para melhorar o texto?

Dorrit: Ler ficção. A não-ficção, ele precisa ler para ser bem-informado e saber argumentar sobre temas genéricos. Ler livros sobre como escrever bem é perda de tempo. A boa ficção, sem você notar, habitua o ouvido a uma coisa linda nos textos: a musicalidade. Leia em voz alta e se tiver algo errado você vai notar. Parágrafos e frases precisam fluir. Às vezes, basta a inversão de um artigo para a frase soar melhor. Vale a pena fazer este exercício. Há uma lição que eu gostaria de deixar, porque é batata: Quando você está escrevendo um texto e encrenca numa palavra que escreveu, mas deixa passar e não a muda, você cometeu um erro. Mude cada vez que uma palavra te incomodar na releitura, porque ela vai atrapalhar o leitor. Vale a pena perder um minuto para achar a palavra certa. Não deixe para consertar depois. E releia, deixe fluir, leia em voz alta.

 

Abraji: Isto é absolutamente relevante na época da inteligência artificial.

Dorrit: A inteligência artificial pode nos ajudar intensamente. Ela com certeza irá se aperfeiçoando para que se recorra a ela como aos manuais de histórias genéricas do mundo, que também tinham erros e depois foram se aperfeiçoando. Eu uso dicionário até hoje. Adoro! Acho uma viagem! Não sou contra a inteligência artificial, até porque não adianta ser contra. Mas nós somos melhores. Nós somos donos da inteligência artificial. Não devemos recorrer a ela como se ela soubesse mais do que nós. Ela nos dá pistas. Algumas certas, outras erradas. Ajuda quando a pessoa tem muitas versões de um texto que ela fez e pode apertar um botão e resumir o que ela produziu. Portanto, o autor gerou o produto original. Tenho inteira confiança de que o ser humano vai dominar a inteligência artificial, e não ser dominado por ela. A razão precisa prevalecer.

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