SOBRE
O PROJETO
DORRIT
HARAZIM
JOSÉ
HAMILTON
ROSENTAL
CALMON
JOEL
SILVEIRA

O mutilado

Dorrit Harazim
O mutilado

(revista Piauí, dezembro de 2007)

Entrar no apartamento do fuzileiro naval americano Travis Greene, em San Diego,  incomoda. O visitante se sente invadindo o refúgio sombrio de alguém que se  esconde da vida. Em plena manhã de sol californiana, numa cidade tão escancarada quanto o Rio, todas as persianas da sala estão cerradas, vedando a  entrada de qualquer fresta de luz vinda do mundo lá fora. O morador do 303 prefere a iluminação indireta. 

Ele abre a porta, enfiado numa camiseta de manga curta que lhe acentua o tórax.  Ex-campeão universitário dos 100 metros e 400 metros com barreiras pelo Estado  de Idaho, Travis Greene veste uma bermuda bege que lhe encobre a pélvis. As  duas pernas com as quais conquistou os troféus de atleta ficaram no Iraque, a  quase 13 mil quilômetros de distância – entre as ferragens de um blindado numa estrada de Ramadi. Na época, ele tinha 22 anos de idade, com dois  aniversários passados na linha de frente. Hoje, com 24 anos, ele prefere dar a  entrevista na cadeira de rodas, sentado sobre os dois cotos, a acoplado a suas  próteses de tecnologia de ponta, cujos componentes incluem pés e joelhos controlados por microcomputadores. 

Travis é o típico all-american boy de um dos estados mais conservadores da  América profunda. Ele nasceu em Twin Falls, que tem 40 mil moradores e é  conhecida no Idaho pela fartura de cataratas e quedas d’água. O único filho da  cidade que teve alguma notoriedade, ainda que póstuma e fugidia, foi Mark Felt,  recentemente identificado como o misterioso “Garganta Profunda”, que, nos anos 70, fez explodir o caso Watergate e derrubou o presidente Richard Nixon. Foi  em Twin Falls que o casal Terry e Sue Greene educou os quatro filhos, tocando  uma modesta concessionária de aquecedores e aparelhos de ar-condicionado. E  foi uma festa quando o filho do meio recebeu a notícia de que fora aceito como  bolsista esportivo na universidade estatal de Boise, a capital do estado. 

O futuro de Travis parecia encaminhado para uma carreira de técnico em  educação física até que, no segundo ano de faculdade, a bolsa foi cortada. “Isso  me jogou numa rotina de três turnos –trabalho, faculdade e atletismo de clube”,  ele lembrou. “Como não consegui dar conta de tanta coisa, comecei a procurar  alternativas. Cogitei seriamente fazer concurso para entrar no FBI.” Foram os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, contudo, que despertaram em  Travis, e tantos outros american boys, o empuxo para se alistar. Estava em curso  uma vasta campanha de recrutamento carregada de tintas patrióticas, e as  alternativas profissionais civis para jovens do interior e de pouca formação se  mantinham minguadas. “As coisas meio que foram se encaixando; decidi que iria  tentar ser fuzileiro naval”, explicou.

Ele estava com 21 anos de idade e aguentou as temidas treze semanas de  treinamento básico. Na formatura do filhote, mesmo o casal Greene esqueceu a  resistência inicial e sentiu orgulho ao vê-lo envergando o mítico uniforme de  fuzileiro naval. Dos 55 candidatos de seu pelotão, apenas a metade chegou lá.  “Você realmente se sente especial”, recordou, “pois acaba de passar por um  treinamento que pode ser considerado um dos períodos mais duros e tensos de  sua vida. Todos chegam ao final com um baita orgulho, que pode se tornar uma  faca de dois gumes – marines tendem a ter um ego gigantesco. Alguns usam isso  para o bem; outros, para se meter em encrenca.” 

A invasão do Iraque começou 72 horas após a sua formatura. Quase faltou tempo  para o jovem recruta de Twin Falls concluir suas oito semanas de aperfeiçoamento  complementar, na Escola de Infantaria do Corpo de Fuzileiros Navais, de Camp  Pendleton. “Seis dias depois da conclusão de curso eu estava no Iraque.” 

Desde que o presidente George W. Bush deslanchou a guerra contra o terror – primeiro no Afeganistão e, a partir de março de 2003, contra o Iraque –, mais de  1,3 milhão de jovens americanos passaram pela frente de combate. É quase uma  Porto Alegre inteira. A estrutura médico-hospitalar acoplada a esse deslocamento  mamute comporta, com variações, dois cirurgiões e 65 profissionais do ramo por  batalhão. Mas não é a dimensão da equipe médica que define a probabilidade de  sair com vida do front. O fator determinante, entre morrer em combate ou ser  trazido de volta à vida, mesmo que em pedaços, está na velocidade e na  qualidade do atendimento. Nesse quesito, a medicina militar está fazendo história na guerra do Iraque. 

Na carnificina da guerra civil americana, travada há 150 anos, era corriqueiro que  mesmo um comandante lendário como o confederado Thomas “Stonewall”  Jackson, quando ferido, não recebesse socorro em tempo hábil, e acabasse  morrendo uma semana depois de ter o braço serrado. Na II Guerra Mundial (1939- 1945), um em cada dois feridos graves morria antes de ser retirado do campo de batalha. Foi somente depois da guerra do Vietnã (1965-1975) que o conceito de trazer a medicina mais para junto dos combates começou a emplacar. Graças a  essa proximidade, hoje mais de 90% dos feridos de guerra em combate  conseguem chegar vivos a um hospital de campanha. No Vietnã, um ferido levava em média 45 dias até aportar num hospital em território americano,  enquanto hoje esse tempo se conta em número de horas. 

Travis Greene e seus companheiros do 7º Regimento de Twenty Nine Palms  embarcaram para a guerra num avião comercial da Delta Air Lines que decolou de  Atlanta, na Geórgia. “Pelo que lembro, 90% dos recrutas a bordo eram recém formados como eu, a maioria estava animada e só havia uns poucos hesitantes”,  ele disse. “No fundo, nenhum de nós sabia o que esperar.” Alguns elementos ajudavam a manter o moral alto: os pilotos eram militares da reserva, as comissárias, voluntárias, e a cabine de passageiros fora enfeitada com balões,  faixas e cartões escritos por colegiais que lhes desejavam boa sorte e diziam que  o país estava orgulhoso de seus soldados.

Travis, moderado e cauteloso, quis manter o relógio biológico o mais intacto  possível e tratou de dormir a maior parte do tempo. Desembarcou sem maiores  inquietações no Kuwait, que servia de entreposto às tropas enviadas para a  invasão, e já no dia seguinte partiu em comboio até a cidade iraquiana de Karbala. “A invasão inicial tinha terminado com sucesso e reinava  uma espécie de pausa militar”, contou o fuzileiro. “Estávamos sendo mandados  para substituir o pessoal da primeira leva. Era um tempo em que havia marines de  sobra para reposição, e eu fazia parte desse novo grupo.” 

Durante os três meses de duração de sua primeira missão, o soldado de Idaho se  lembra de um único inimigo feroz: o escaldante verão iraquiano, sem ar condicionado ou qualquer estrutura de conforto. De resto, disse, tudo “foi  pacífico, estranhamento pacífico”. Sua unidade fazia rondas em grupo, saía às  ruas sem colete nem capacete e vez por outra até deixava o fuzil no estádio de  futebol onde estava aquartelada, “para não passar pela chatice de montar e  desmontar a arma”. Viu, nomáximo, morteiros explodindo aqui e ali e tiroteios que  não duravam mais que alguns minutos. A guerra parecia distante. 

Travis teve apenas duas ou três aulas sobre usos e costumes árabes antes de  embarcar – bem menos do que as 44 páginas do manual Instruções para Tropas  Americanas no Iraque durante a II Guerra Mundial, de 1943 –, mas deu para o  gasto. “Foi tão pacífico que costumávamos usar uma cabine telefônica do outro  lado da rua para ligar para casa, via satélite. Como uma chamada de cinco minutos custava 10 dólares, liguei só uma vez. Para dizer que estava voltando”,  contou na entrevista. Seu soldo de soldado raso, 1.700 dólares por mês, não dava  para maiores gastos. 

Não teve muito para contar aos colegas quando retornou à sua base, perto de San  Diego, e a única novidade no treinamento do seu 7º Regimento, naquele final de  verão de 2003, foram umas aulas sobre PTSD, sigla em inglês para “trauma pós guerra”. Desde então o quadro se agravou, e o que lhe parecia uma sigla a mais no  vocabulário militar adquiriu dimensão bem mais palpável. Em 2006, havia 29.041  casos registrados de ex-combatentes com post-traumatic stress disorder; em  2007, o número saltou para 48.559. Segundo um estudo da americana Linda  Bilmes, analista da Universidade de Harvard, o tempo de espera para uma  avaliação do estado mental de um paciente costuma ser de seis meses. São os  chamados walking wounded, algo como “feridos ambulantes”, homens e  mulheres das Forças Armadas aparentemente sadios que, na realidade, estão  profundamente alterados por dentro. 

Uma vez detectada a síndrome, o combate ao PTSD se dá em muitas frentes. A  mais inovadora recorre à realidade virtual, por meio da exposição repetida do  paciente às lembranças mais traumáticas da guerra. Nada a ver com as longas  sessões de análise dos tempos do Vietnã. Muito a ver com a linguagem dos  videogames de hoje. Nessa linha, os experimentos mais avançados estão sendo realizados no laboratório da Escola de Medicina da Universidade de Emory, em  Atlanta, na Geórgia. No laboratório de Emory, o paciente caminha, ou permanece  sentado numa poltrona sobre uma plataforma móvel. No capacete, recebe a  réplica sensorial das circunstâncias em que ocorreu o trauma. Isso pode incluir  detalhes como o som do detestável vento iraquiano, o chamamento às preces dos muçulmanos, o choro de bebês, o ronco de helicópteros, o silvo de tiros, de  morteiros. Pode incluir também odores como gasolina, lixo, diesel, pólvora e  temperos de comida árabe. Ao longo de cinco semanas, ele é submetido à exata  repetição do que viveu. 

A revista eletrônica Salon obteve a primeira entrevista de um soldado que passou  pela experiência em Emory. Kevin Smith e sua unidade tinham concluído uma  infrutífera operação de busca numa casa em Fallujah, quando, de repente, um  estrondo sacudiu tudo e o inferno se instalou à sua volta. “Durante muito tempo,  eu sentia como se tivesse feito alguma coisa muito errada em Fallujah”, contou o  soldado Smith. “Pelo treinamento que recebe no Exército, você pensa que  cometeu um grande erro se é baleado. Eles querem que você se mantenha  motivado, e por isso te dizem que, se você morrer, a culpa é sua. Como eu dirigia o  veículo militar que explodiu, senti que a culpa tinha sido minha.” O tratamento em  Emory, batizado de “Iraque Virtual”, parece ter dado resultado, e vários medos de  Kevin diminuíram. Já outros fantasmas do Iraque real permanecem encruados.  Um deles não lhe sai da cabeça: “Uma vez, atiramos contra alguns insurgentes.  Um dos caras não morreu, e vi quando ele pôs a mão na cabeça e tentou puxar os  miolos do crânio aberto. E eu, ali, parado, rindo”. 

Para o fuzileiro Travis Greene, que teve apenas dois meses de retorno à sua base  nos Estados Unidos e fez uma rápida visita à sua cidade, Twin Falls, antes de partir  para uma segunda temporada no Iraque, a guerra não havia se mostrado por  inteiro. “A viagem foi um pouco mais tensa do que a primeira, porque uns 70% dos  soldados a bordo também estavam indo pela segunda vez”, contou. “Mas continuávamos ignorando o quadro real e não sabíamos para onde  estávamos sendo despachados.” As dúvidas foram desfeitas no desembarque:  sua unidade iria para a localidade de Qusaiba, perto da fronteira com o Irã, região  descrita pelo sargento que os recebeu como “um faroeste sem ordem e sem lei”. 

Travis ficou aquartelado ali por seis meses, de março a setembro de 2004, e pôde  perceber que a convivência entre iraquianos e americanos havia mudado. Em  pouco tempo, foi apresentado às bombas de fabricação caseira, das quais se  começava a se falar com mais frequência, e presenciou a morte do primeiro  companheiro de farda. “Decidi não ficar olhando para ele, no chão, para garantir a retaguarda de quem estava ferido, que era a minha função”, disse. Sobretudo,  entendeu o uso da palavra “faroeste”: ruas desertas e portas fechadas por ordem  dos insurgentes iraquianos. Numa só operação de contrainformação, com tropas  americanas esquadrinhando Qusaiba casa por casa, foram feitos 200 prisioneiros.  “Naquele dia, se encontrássemos algum iraquiano na rua, acho que ele seria considerado alvo legítimo”, afirmou.

Em Twin Falls, Terry e Sue Greene recebiam poucas notícias do filho no outro lado  do planeta. As aberrações cometidas por militares americanos contra prisioneiros  iraquianos em Abu Ghraib haviam corrido mundo e começavam a dividir a opinião pública dos Estados Unidos. Embora no quartel de Travis houvesse telefonia via  satélite à disposição dos recrutas, ele não ligava com frequência. “Eu falava mais  com os meus amigos porque sabia que os meus pais iam fazer um monte de  perguntas”, disse o fuzileiro. “Se eu não respondesse, eles ficariam preocupados.  A imaginação de quem tem um filho no front cria asas, e os e-mails em geral  funcionam melhor, não aumentam a ansiedade. Os amigos sabem ouvir melhor o  que você realmente está dizendo.” Pelo menos à noite, o casal Greene podia  dormir tranquilo: segundo norma do Departamento de Defesa, nenhum  telefonema para informar sobre morte ou ferimento grave de um combatente pode  ser feito entre as dez da noite e as seis da manhã. 

Em setembro de 2004, Travis voltou inteiro, pela segunda vez, à base californiana  de Twenty Nine Palms. Seu soldo tinha passado a 2.200 dólares por mês, ele  estava mais bem-informado do curso de seus deslocamentos futuros – só seria  chamado para um terceiro turno dentro de um ano – e pôde acumular dados sobre  a cidade de Ramadi, a oeste de Bagdá. Foi com a situação no Iraque consideravelmente deteriorada que o recruta de Idaho levantou voo pela terceira  vez rumo à guerra. Ele contou: “Embora me sentisse mais preparado para a  missão, lembro-me de ter pensado que talvez estivesse abusando da sorte. Passei  a viagem pensando em segurança”. 

Travis tinha trocado de pelotão. Em vez de fazer patrulhamento a pé, como em  Karbala e Qusaiba, fora designado para integrar uma unidade motorizada. Suas  missões eram de rotina: controle de carros, neutralização de explosivos, escolta  de veículos de transporte militar, cobertura para tropas de assalto a casas. Seu  blindado era um Humvee e o inimigo a desarmar se chamava IED – combinação de  siglas responsável pelo maior número de mortos e mutilados da guerra. 

No jargão da tropa, Humvee é a designação simplificada de High Mobility  Multipurpose Wheeled Vehicle (HMMW), o veículo sobre rodas multiuso e de alta  mobilidade que se tornou a espinha dorsal das operações militares americanas  mundo afora. Mais de 10 mil unidades desses blindados leves fazem parte da  operação de ocupação do Iraque. IED, por sua vez, significa Improvised Explosive  Device, ou “artefato explosivo artesanal”, a temida bomba de fabricação caseira dos insurgentes. Desde que passou a ser usada sistematicamente, provocou 40%  das perdas fatais e mais da metade dos feridos americanos no front. 

Na fase inicial da insurreição, três anos atrás, os IEDs eram petardos caseiros e  toscos. Só que evoluíram mais do que a blindagem dos veículos de transporte  militar em uso no conflito. Escondidos à beira de estradas e turbinados com  componentes químicos, material inflamável, metais e pedras, costumam ser  detonados por controle remoto. Ou são usados como minas. Na versão inicial, provocavam ferimentos principalmente nas pernas e nos braços, áreas em que o  uniforme do soldado oferece proteção menor em troca de mobilidade. À medida que foram se sofisticando, contudo, esses artefatos passaram a provocar danos  cerebrais, mesmo sem atingir diretamente a cabeça da vítima, protegida por  capacete. A intensidade das queimaduras também aumentou, em decorrência da  adição de produtos químicos. Para tornar a arma ainda mais letal, os fabricantes  incluíram pedras no coquetel explosivo – isso porque os estilhaços de metal  incandescente penetram o corpo esterilizados pela temperatura excessiva, o que  não ocorre com nacos de pedra. Os processos de infecção que acompanham a  carnificina, nesse caso, são tenebrosos. 

Da rotina de Travis em Ramadi passaram a constar confrontos diários, incursões  noturnas, proximidade maior com o inimigo. Durante os três primeiros meses,  houve pelo menos seis IEDs detonados contra o seu comboio, mas ele saiu ileso.  Já não cabia nenhum envolvimento com a população local. “Tínhamos pessoal  especializado para isso”, explicou o fuzileiro. Pelo que se lembra, alguns  moradores ainda recebiam os americanos com boa vontade, embora a maioria já  se recusasse a qualquer contato – por medo ou por serem insurgentes na moita. A  cada dia, aumentava na tropa a insegurança diante da tática não convencional do  inimigo. Consolidava-se a pressão brutal de se saber alvo o tempo todo, de não  conseguir distinguir amigo de inimigo, de precisar adivinhar qual veículo seria explodido. Sem falar no horror de ver companheiros estilhaçados, a ponto de  ser impossível o reconhecimento. O “eles” passa a fazer parte do relato do  fuzileiro: “Eles não usam armas… eles ficam sentados atrás da janela explodindo  a gente… eles…” 

E quando foi o seu alive day? 

A expressão – que em tradução livre significaria “o dia em que fiquei vivo” – tornou-se corrente entre as tropas americanas em guerra no Iraque. Indica a  data em que alguém escapou de morte certa no campo de batalha. 

A resposta de Travis sai sem emoção, sem variação de tom: 7 de dezembro, 2005.  O relato também: era noite, e tínhamos que resgatar um pelotão emboscado  numa das duas principais estradas de Ramadi. Conhecíamos bem o caminho.  Nosso comboio era composto por sete viaturas: dois Humvees na frente, três  carros de transporte de tropas no meio, dois Humvees na retaguarda. Eu estava no  último. Ainda nem tínhamos chegado ao local do pelotão emboscado, quando um  IED explodiu junto de um dos veículos do meio, ferindo um dos ocupantes. Parecia  ser uma concussão fatal, e, nessas horas, quem está mais próximo, ou com  margem melhor de ação, entra em cena. Saí do meu Humvee. Enquanto corríamos  até o local da explosão, já carregando uma maca armada, outra bomba atingiu em  cheio um segundo veículo, que perdeu o rumo e engavetou com o da frente. O comboio tinha sido imobilizado, ou seja, risco total, e era preciso dar cobertura  para que pelo menos alguns carros conseguissem prosseguir. Foi então que  ocorreu a terceira explosão. Só me lembro da bola de fogo, e acho que lembro do  som. Me vi sentado no chão, olhando para os pedaços das minhas pernas, que acabavam no joelho. Depois, caí para trás e fechei os olhos.

Travis também estava em chamas, mas não guarda nenhuma marca de  queimadura no corpo. O uniforme dos fuzileiros navais, mesmo não sendo anti inflamável, é refratário a fogo e garante a quem o veste entre cinco e dez segundos  de proteção. É provável que tenha recebido atendimento imediato. Um dos integrantes do comboio, Tony Bullene, que tinha 19 anos e era paramédico da unidade, também teve as duas pernas arrancadas pelo impacto, mas conseguiu  fazer um torniquete no próprio corpo. O balanço final daquela noite de dezembro  na estrada de Ramadi, entre blindados que ardiam e soldados que urravam, foi  aterrador: quatro fuzileiros sem ambas as pernas; um fuzileiro com uma perna mutilada; um morto, atingido em cheio acima da cintura. Dos feridos  graves, Travis Greene era quem estava em condição mais crítica. Suas lembranças  são fragmentadas: 

O resto para mim é nebuloso. Continuei a ouvir a agitação à minha volta e lembro  que me puseram de volta num Humvee já sem teto. Também me lembro de ter  sido despido num centro médico de emergência e de achar que estava ouvindo o  ronco de uma hélice. Minha última lembrança é justamente ser posto num  helicóptero. Acordei uma semana mais tarde, num hospital dos Estados Unidos. 

Em nenhuma guerra anterior, Travis Greene estaria vivo para contar sua história. E  é no tempo entre a explosão em Ramadi e sua chegada ao Hospital Naval de  Bethesda, no estado de Maryland, vizinho da Casa Branca, que está a chave do  grande salto da medicina aperfeiçoada no Iraque. 

Richard Jadick, cirurgião-chefe do 1º Batalhão do 8º Regimento dos Fuzileiros  Navais, foi um dos impulsionadores da abordagem agressiva da medicina de  guerra. Defensor quase maníaco da necessidade de empurrar a infraestrutura  médica para a zona de combate – em vez de mantê-la na retaguarda, próxima do  comando –, Jadick aplicou o conceito durante sua permanência de sete meses no front. Mais especificamente, em Fallujah, a cidadela-mor da insurreição  urbana contra a presença americana. Foi em Fallujah, em março de 2004, que  quatro homens da companhia de mercenários Blackwater foram emboscados,  desmembrados, embebidos em combustível, incendiados e arrastados pelas ruas  da cidade. Dois dos cadáveres menos mutilados ainda foram pendurados na  estrutura metálica de uma antiga ponte sobre o rio Eufrates, ao som de um coro  que comemorava: “Fallujah é o túmulo dos americanos”. 

Com esse pano de fundo, a contraofensiva dos Estados Unidos, batizada de  Operação Fúria Fantasma, foi radical: do lado iraquiano, mais de mil insurgentes  mortos; do lado americano, mais de 200 feridos e quase quarenta mortos – tudo  isso em apenas duas semanas. E seriam muitos mais, se Jadick não tivesse  fincado uma estação avançada de primeiros socorros no coração da zona de combate. 

Essas unidades, conhecidas pela sigla FAS (Forward Aid Station), se destinam  apenas a estabilizar o estado do ferido grave, até a chegada de um helicóptero ou ambulância de guerra. Operam com estrutura enxuta e estão equipadas para  atender no máximo dez feridos ao mesmo tempo. As ferramentas de intervenção  são as básicas: kits de entubação, cateteres, equipamentos para traqueostomia,  tubos expansores da caixa torácica, torniquetes, cobertores de mylar (náilon metalizado) usados em voos espaciais, todo tipo de bandagens, anticoagulante  Hespan, antibióticos. Ao contrário do inesquecível Hawkeye do seriado Mash,  interpretado pelo ator Alan Alda, que se recusava a usar uma arma na Coréia por  medo de ferir alguém, as equipes médicas americanas no Iraque praticamente  não se distinguem do resto da tropa. Elas usam os mesmos coletes à prova de  bala e capacetes de Kevlar, portam pistolas semiautomáticas de 9 milímetros ou,  no caso do pessoal de resgate, metralhadoras M4. “Com o tipo de ferimento que  se espera em situações de combate urbano como no Iraque”, escreveu o doutor  Javidick, “dez ou quinze minutos sem atendimento de emergência podem ser  fatais. Em caso de sangramento arterial maciço, bastam cinco minutos – e a  diferença significa desembarcar nos Estados Unidos num assento de avião ou  num caixão coberto com a bandeira americana.” 

No início de 2007, Javidick publicou um relato de sua experiência no front, On Call  in Hell [Plantão no Inferno], no qual compara a situação de guerra com os tempos  em que operava no centro de traumatologia de um hospital universitário de Baltimore, com plantões de 36 horas e média de 100 pacientes em choque. A  diferença maior, diz, não está na natureza ou na gravidade dos ferimentos. Está no  fato de que a equipe médica, num hospital de campanha, conhece quase todos os  soldados que lhe chegam estraçalhados ou morrem sob seus cuidados. Isso tem  um alto custo emocional. No caso de Travis Greene, a perda de sangue havia sido  tão volumosa que poucos acreditavam na possibilidade de mantê-lo vivo. “Disseram que o meu estado era horrível”, contou ele. “Precisaram me ressuscitar  duas vezes no voo do Iraque para a Alemanha, e tive outras duas paradas cardíacas antes de ser considerado fora de perigo, uma durante a transferência da  Base Aérea de Andrews para o Hospital Naval em Bethesda e a segunda durante  os 53 dias de UTI em solo americano.” A referência à Alemanha é obrigatória em  qualquer relato de ferido grave de guerra americano. Isso porque, uma vez estabilizado o suficiente para ser encaminhado a uma unidade hospitalar ainda no  Iraque, a etapa seguinte é Landstuhl, o imponente centro de traumatologia das  Forças Armadas dos Estados Unidos construído na região de Frankfurt. 

Por estar inconsciente, Travis não tem nenhuma lembrança do voo que o tirou do  Iraque para sempre. Melhor para ele. Trata-se de uma ponte aérea de emergência,  com quatro horas de duração, realizada por um avião de carga C-17 extirpado de  assentos e de tudo o que lembre uma vida normal.Conhecido pela sigla CCATT, de  Critical Care Air Transport Team, por se destinar exclusivamente ao transporte de  pacientes em estado crítico, o C-17 tem montada em suas entranhas uma UTI  com três andares de macas. Foi também a bordo de uma dessas UTIs voadoras  que o fuzileiro Travis fez a travessia do Atlântico, último trecho de sua longa  jornada de retorno aos Estados Unidos.

Segundo o correspondente de guerra Bob Woodru~, da rede de televisão ABC,  esses vôos costumam ter prioridade até mesmo sobre a movimentação do Air  Force One, o avião do presidente americano. O próprio Woodru~, apesar de não  ser militar, foi um de seus usuários mais célebres. Em janeiro do ano passado, ele  acabava de ser entronizado como âncora do noticiário nobre da emissora, no  lugar do saudoso Peter Jennings, e decidiu fazer história atuando fora dos estúdios  o máximo possível. Embarcou para o Iraque, tendo na equipe o brasileiro Magnus  Macedo como técnico de som, e estava prestes a fazer uma entrada ao vivo,  dentro de um veículo da Infantaria, quando um artefato de 135 milímetros  explodiu na lateral da estrada, dando início a explosões em cascata. 

Woodru~, que estava com o corpo para fora do blindado, pronto para iniciar a  locução, recebeu em cheio o impacto de rochas, metais e pedras enlameadas.  Uma arrancou um pedaço de seu queixo e entrou no pescoço. Outra se alojou no  sínus da face e foi parar no fundo do olho. O jornalista teve o capacete arrancado e  a força da explosão esmagou parte de seu crânio, afora deslocar o globo ocular.  Além de três pedras grandes e dezenas de menores que se infiltraram pelas axilas  e se aquartelaram a milímetros do coração, também teve aberta nas costas uma  cratera do tamanho de um punho. Desmaiou, e não se lembra de nada do que  aconteceu nos trinta dias subsequentes. 

A explosão ocorreu em 29 de janeiro de 2006. No dia seguinte, às onze da manhã,  Woodru~ já dava entrada em Landstuhl, na Alemanha, onde foi submetido a uma  hemicraniotomia, a remoção de metade do crânio, para dar espaço ao inchaço da  massa cerebral. E sessenta horas depois, ainda em coma, ingressava no Hospital  Naval de Bethesda, o mesmo que recebeu Travis. “Me disseram que, se eu tivesse sofrido um acidente desse tipo um ano antes, ou como civil em território americano, e não no campo de batalha, eu certamente teria morrido ou sofrido  danos irreparáveis. Em poucos lugares se realiza uma hemicraniotomia sem  hesitações como na guerra”, escreveu Woodru~. 

Não foi sua única cirurgia. Nos quatro meses seguintes, recebeu uma placa de  titânio, teve a abertura do crânio substituída por um composto de acrílico, passou  a usar um capacete de plástico e, por fim, foi submetido a uma cranioplastia, para  remediar a perda de 14 centímetros de massa cefálica. Em novembro de 2006, dez  meses após a explosão em Tiji, Bob Woodru~ voltou a trabalhar. Desde então, fez  reportagens na Síria, em Angola e em Cuba. Ainda se confunde com algumas  palavras e por isso não faz entradas ao vivo – troca “sílaba” por “sinônimo”, por  exemplo –, mas, como conta no livro In an Instant [Num Instante], escrito em  parceria com a mulher, Lee, foi um caminho e tanto desde os dias em que olhava  para uma tesoura e não sabia para o que servia. 

Os milhares de soldados cujos corpos se transformaram em zona de combate não  são celebridades de televisão. Em sua imensa maioria, fazem um esforço sobre humano para se manter nas fileiras das Forças Armadas e, assim, dar algum  sentido ao que perderam. É uma forma de conservar a identidade que lhes resta e  de suportar os rigores da reabilitação física. A tônica da superação, associada ao patriotismo militar, tem sido de enorme utilidade nos centros de reabilitação dos  feridos no Iraque. 

Travis Greene escolheu o caminho mais difícil, sem aparente sinal de orfandade:  decidiu pedir baixa do corpo de Fuzileiros Navais, retornar à vida civil em Idaho e  se tornar o professor de educação física que imaginara ser em seus tempos de  astro do atletismo. Mesmo sem as duas pernas. O início desse caminho de volta  começou a ser feito quando ele recobrou a consciência no hospital de Bethesda.  “Meus pais tiraram várias fotos da ‘minha casa’ quando voltei da guerra”, disse  Travis, de supetão. “Quer ver?” Pela primeira vez desde o início da entrevista, ele  se anima. Dá uma guinada de 90 graus na cadeira de rodas e, com agilidade  insuspeitada, vai até uma estante abarrotada de DVDs, CDs e livros e desenterra  um gordo envelope de fotos. Fez uma pré-seleção da qual não constava nenhum  registro dele antes do atentado, ainda como garboso fuzileiro naval de 1,88 metro  e 85 quilos. Todas as fotos que mostra são do seu quarto de UTI, onde um total de  43 sondas, tubos e respiradouros artificiais o mantiveram vivo. Está irreconhecível  em todas elas, ora pela magreza, ora pelo inchaço. “Essa foi tirada no dia em que  um dos meus cupinchas veio me visitar. Ele perdeu só uma perna”, explicou.  “Nessa aqui, estou recebendo uma condecoração do general Kelly, a Medalha de Honra da Marinha e dos Fuzileiros. Mas nem lembro direito, de tão dopado que  estava”, prossegue animado. “E tem essa outra, do dia em que saí da UTI” – a foto  o mostra na cama enfeitada por meia dúzia de balões coloridos e faixas de  encorajamento: “Fique bom logo”. 

Trechos do diário mantido por seus pais, Terry e Sue, refletem o que foi aquele  período: 

14 de dezembro. Travis está no respirador artificial… Sua voz é um fiapo e com o  barulho das máquinas do quarto é muito difícil ouvi-lo… 

16 de dezembro. Ele piorou. Sangramento descontrolado depois de mais uma  cirurgia [no total foram 26]. Ele sobreviveu graças ao esforço heroico da equipe  médica… Sua função renal está mínima… 

18 de dezembro. O inchaço está diminuindo, e começo a reconhecer o meu  menino de novo… Os médicos acreditam que ele tem força para aguentar uma  nova cirurgia amanhã… 

19 de dezembro. Piora considerável esta tarde, depois de receber mais seis bolsas  de sangue. Nova cirurgia na cama mesmo, para estancar sangramento… 21 de dezembro. Sinais vitais estáveis. Ele está combatendo uma infecção.  Fortemente sedado. Recebeu a visita do presidente George W. Bush e da primeira dama, que o agraciaram com a Purple Heart Medal [a Medalha do Coração  Púrpura]. Vamos torcer para que ele se lembre da cena mais tarde. 

22 de dezembro. Mais cirurgia de limpeza do tecido esta manhã. 23 de dezembro. Início da diálise e fortes doses de antibiótico para combater a  infecção… Véspera de Natal. Travis acordou agitado esta manhã. Está com febre e  apreensivo por ter de fazer nova cirurgia nas duas pernas… É de cortar o coração…  Quase não há espaço no quarto para nós desde que trouxeram mais máquinas…

26 de dezembro. Recebeu 37 bolsas de sangue no final de semana… Está com as  mãos atadas para não arrancar os tubos… No final do dia, retirada do respirador  artificial, e ele está bem. Estável mas confuso. Quer a sua arma e diz que tem  responsabilidades no front. Explico que ele está num hospital em Bethesda, na  América, mas ele insiste que precisa da sua arma para garantir a segurança da área… 

27 de dezembro. Travis ingeriu comida de verdade: arroz, peru, sopa, um pãozinho  e leite… Deus é Pai…. 

28 de dezembro. A infecção se espalhou e nova cirurgia para Travis… Estamos  arrasados… 

A amputação acima do joelho e o sucessivo encurtamento dos cotos, rente ao  quadril, foram a única forma de lhe salvar a vida, eliminando cada pedaço de  tecido que começava a gangrenar. Travis Greene passou os oito meses seguintes  no Walter Reed Medical Center, para a etapa final de sua recuperação de base  como amputado: o treino para uma vida nova com próteses. 

O Walter Reed é o maior complexo hospitalar do Exército dos Estados Unidos. Tem  5.500 quartos e uma centena de pavilhões esparramados numa área de 450 mil  metros quadrados, no norte da capital americana. Verdadeiro mamute quase  centenário – recebeu o primeiro paciente em 1909 – que deve o nome a seu  fundador, um major-médico, e a reputação à excelência de sua medicina militar. Isso até o início de 2007, quando uma série de reportagens de Dana Priest,  publicadas no Washington Post, revelou o escândalo. 

Incapaz de atender às maciças levas de feridos geradas por seis anos de guerra no  Afeganistão e no Iraque, o Walter Reed simplesmente entrou em colapso. Negligência, abuso de drogas,insalubridade, abandono administrativo – tudo se  deteriorara. Um ferido de guerra típico, por exemplo, precisava enviar 22  documentos a oito comandos militares distintos para ser admitido e depois  receber alta. Dezesseis redes de computador operavam praticamente sem  comunicação entre si. Roedores marcavam presença no pavilhão 66. O escândalo  foi tão agudo que cabeças rolaram, a começar pela do secretário do Exército e a  do diretor do hospital. Foram feitas melhorias, mas tomou-se a decisão de desativar o complexo num prazo de cinco anos. 

Ainda assim, para Travis Greene e outros milhares de ex-combatentes, a  lembrança do recomeço passa pelo Walter Reed. Ele disse: “Quando eu cheguei  lá, não via saída para nada. Mas com tantos caras na mesma situação, todo mundo tentando se reerguer… Um te conta um pedaço, outro te ensina um truque  novo… Etapa por etapa, você vai ficando de pé. Acho que se eu estivesse num  hospital civil não teria conseguido”. 

Circular pelos 113 mil metros quadrados de área construída do Walter Reed é uma  imersão na tecnologia do remendo humano. Por trás da porta de um pavilhão, por  exemplo, funciona um “simulador de vida urbana”. Ali, no meio da sala, está  instalada uma plataforma circular de 2 metros de circunferência, envolta por um  imenso telão em semicírculo. Acima da plataforma, uma espécie de grua com um gancho de suspensão fará as vezes de cinto de segurança para o mutilado com  prótese que usar o simulador. O exercício consiste em pôr o soldado-paciente em  cima da plataforma móvel, simulando mudanças de terreno, variações de  calçada, escadas rolantes, subidas e descidas com imprevistos típicos do  cotidiano. Ao mesmo tempo, surgem no telão imagens em movimento de um centro comercial, um cruzamento de rua, uma arquibancada de beisebol. “É o  último teste para saber se o paciente está apto a funcionar em situações reais  com a prótese, e para fazê-lo se sentir de volta à sociedade antes de voltar  realmente”, explica Don Vandrey, relações públicas do hospital. Adiante, atrás de  outra porta, funciona o novíssimo “laboratório de análise de passadas”, um espaço de 20 metros de comprimento por 10 de largura. Ao longo de suas quatro  paredes, 23 câmeras, além de sensores instalados no chão, monitoram  milimetricamente o movimento de andar e correr do mutilado, visando melhorar  ao máximo a eficácia de sua prótese. “Os gráficos cinéticos obtidos pelas câmeras revelam falhas que a olho nu jamais se perceberiam e que o próprio  paciente desconhecia”, explica a diretora do laboratório. “Com microprocessadores embutidos, entendemos melhor a força gerada por pés e  joelhos e assim vamos empurrando os limites do desempenho.” 

Um dos laboratórios de reabilitação mais concorridos do Walter Reed é o  simulador de tiro, instalado no 2º andar do prédio principal. Alinhadas no chão da  sala, estão três metralhadoras M4 e uma pistola de 9 milímetros, com munição ao  lado. Ao fundo, separado por um fosso, um telão com quatro alvos de  configuração e altura variadas – para amputados que preferem atirar deitados,  sentados em cadeira de roda ou de pé em suas próteses. E para os amputados de  mãos e braços, há uma variedade de próteses que se acoplam às armas,  permitindo que sejam disparadas por portadores de mãos mecânicas. O que se  pretende, no laboratório, é simular com exatidão as sensações e os movimentos  do uso das armas mais comuns do serviço militar americano. Só que, ali, elas não  matam. Seu peso, ruído, material e munição são reais, mas o tiro é virtual. “Todo  ferido de guerra que pretender retornar à ativa precisa passar por aqui, para se refamiliarizar com uma arma”, explica o instrutor James Cokquhoun, da reserva.  “Mas cabe aos médicos e a cada paciente dizer se está pronto para a prova. É  preciso cuidado, pois o ex-combatente pode estar sofrendo de trauma e ter uma  reação inesperada ao pegar de novo numa arma e apertar o gatilho. E se ele pirar  ou algo assim?” Para o médico Charles “Chuck” Scaville, chefe do setor de próteses do Departamento de Reabilitação, a simulação de tiro é parte da  identidade do militar: “Não queremos sugerir que voltem a combater, apenas que  podem voltar a fazer o que faziam antes”. 

Na prática, são levas de feridos que não veem a hora de poder entrar na sala de  tiro. “Neste exato momento, treino um grupo de dez e quinze com próteses, que  estão voltando para o Iraque”, diz o instrutor Cokquhoun. Segundo estimativas  recentes, cerca de 20% dos feridos no Afeganistão ou no Iraque voltam à ativa, e,  destes, entre 10% e 12% retornam ao teatro de guerra.

Travis Greene não chegou a conhecer o moderníssimo Centro Militar de Treinamento Avançado do Walter Reed, inaugurado três meses atrás, quando ele  já se encontrava em San Diego. Éuma unidade de arquitetura arejada, de espaços  amplos, reservada a pacientes que já tiveram alta ou estão em fase de transição.  Em tese, quem aporta ali ultrapassou o pior, fisicamente. É o caso do fuzileiro Josh  Bleill, de Greenfield, Indiana, que conheceu Travis no período de internação. Josh,  de 30 anos, cara de 20, está acomodado sobre os dois cotos num colchonete, no  centro do pavilhão, pronto para começar mais uma sessão de fisioterapia. É um  dos pacientes mais expansivos e alegres da leva recente; fala solto e à vontade,  embora as entrevistas sejam dosadas a conta-gotas, para preservação da  privacidade individual e por cautela institucional. 

Josh cumpria o terceiro ano de guerra no Iraque, aquartelado no centro de  Fallujah. Sua história é uma variação em torno do mesmo tema: saíra em missão  de patrulhamento a bordo de um Humvee. “Paramos um carro que nos parecia  suspeito e alguém detonou um IED, que explodiu embaixo do meu assento, na  retaguarda direita. O sargento à minha frente morreu, o parceiro à minha esquerda  também, o atirador da torre foi expelido do veículo e perdeu a perna direita, o  motorista do Humvee saiu andando sem nenhum ferimento e eu fiquei sem as  duas pernas. Balanço da bomba caseira: dois mortos, dois amputados, um  inteiro.” Além da dupla amputação, Josh teve a bacia estraçalhada – foi  recauchutada com 34 pinos –, o nariz e o queixo fraturados e quatro dedos quebrados. “Me recuperei bem”, diz, satisfeito. Apenas não usa a expressão alive  day para o dia 15 de outubro: “Não vou prestar homenagem à data em que perdi  dois dos meus melhores amigos”. 

Da carnificina em si, lembra-se pouco: “Minha memória para uns vinte segundos  antes da explosão, embora tenham me dito que fiquei consciente o tempo todo.  Como a explosão se deu embaixo do meu assento, fui o último a ser resgatado.  Acharam que eu estava morto”. Ele também só foi acordar em Landstuhl, e só então se deu conta de que havia se tornado um amputado duplo. “Foi duríssimo”,  diz. “Eu continuava com uma traqueostomia, o que me impedia de gritar ou falar, e também não podia me comunicar por escrito, porque tinha quebrado os dedos da  mão direita.” 

Na imensidão daquela arena de reabilitação do Walter Reed, ouve-se um gemido  abafado, clandestino. O som vem de um rapaz deitado de bruços, sobre um  colchonete ortopédico, a uns 3 metros de distância de Josh. O jovem biamputado  tem o rosto escondido por um boné. Um bebê de seis meses está adormecido  junto de sua cabeça: é Charlene, toda de vestido cor-de-rosa. A avó da criança – e mãe do mutilado – observa a cena a certa distância. 

“Como a nossa vida vai continuar lá fora, é ótimo ver cenas de família aqui na  reabilitação”, garante Josh. “Isso aqui é só um pit-stop antes de você seguir a  viagem da vida.” Sobre casar-se com a jovem colombiana de Indiana que namora  desde os tempos pré-guerra e que vem visitá-lo nos fins de semana, ele é franco:  “Talvez. Vamos ver como as coisas evoluem”. Pelo seu vigor psicológico, Josh tem boas chances de se adaptar a uma vida familiar. Já na categoria dos feridos  neurológicos, os dados mais recentes são sombrios: mais da metade dos  casamentos acaba em divórcio, com os familiares se sentindo isolados e  prisioneiros. Não se sentem nem casados nem solteiros. Um ano depois do  retorno do parceiro, as esposas descrevem o ex-combatente como egoísta,  agressivo e sem emoções. 

No caso de Josh, além do fato de ser filho de aviador da reserva, teve peso a  própria mística que cerca os fuzileiros navais. Há dois meses, ele retornou à sua  cidade pela primeira vez desde a mutilação. Quase um ano havia transcorrido.  “Minha ideia era só voltar a Indiana se pudesse sair do avião andando com minhas  duas pernas mecânicas”, contou. “Era um objetivo que se tornou uma obsessão, e  eu consegui.” Ele lembrou o tamanho do medo e da vergonha que sentiu ao  começar a usar a prótese: cair na frente de outras pessoas. No dia em que  recebeu do presidente Bush a condecoração por ferimento em combate, Travis  ainda estava no estágio de familiarização com a prótese – apenas uma semana de uso. “Mas consegui ficar de pé frente a frente com o presidente, o  que foi incrível”, disse. “Hoje já sei levantar sozinho e por isso perdi o medo.” Josh  Bleill pretende passar o Natal na casa dos pais. 

Travis Greene também. Está de mudança marcada para um apartamento em  Boise, capital do estado de Idaho, a menos de duas horas da casa paterna, para  retomar o curso de educação física. Certamente lhe fará bem sair do degradado  entorno da rua 14, no centro abandonado de San Diego, onde mora desde que  teve alta do Walter Reed. A única vantagem do local é a proximidade com o Hospital Naval da cidade, onde prossegue com as sessões de fisioterapia. De  resto, é uma desolação só: estacionamentos semivazios, lanchonetes baratas,  depósitos e galpões sem vida. Na rua, perambulam estranhas figuras que parecem viver nas franjas da sociedade. Muitos são veteranos de guerra. O prédio  de três andares de Travis é o único decente da redondeza, com portaria eletrônica, saguão de vidraças amplas e elevadores em funcionamento. Ainda assim, as  persianas de seu apartamento, o 303, são inquietantes, mesmo quando vistas por  fora. São as únicas que estão sempre fechadas. 

Perguntado sobre quais pertences tentaria salvar, caso um incêndio como o que  devastou recentemente San Diego109 batesse à porta, Travis hesitou e disse:  “Acho que só os meus documentos e a papelada financeira”. Não mencionou os  dois documentos emoldurados em vermelho, na soleira da janela, ao lado de um  capacete de futebol americano, a Ordem dos Fuzileiros Navais e o Coração Púrpura que recebeu das mãos de Bush. Criada em 1782 pelo general George  Washington, essa última é das mais respeitadas condecorações militares. Travis  ainda estava internado quando foi visitado pela Associação dos Condecorados  com o Purple Heart. O fuzileiro, porém, se mantém a distância, tanto dela como  da miríade de entidades de apoio que pipocam a cada dia: Heróis Feridos pelo  Coração da América, Esperança para os Guerreiros, Projeto Combatente Ferido,  Veteranos do Iraque e do Afeganistão, para mencionar algumas.

“Sempre fico com a sensação de que esses grupos vivem de uma volta ao  passado, quando tudo o que eu quero é seguir em frente”, explica. Ele tampouco acompanha de  perto o noticiário sobre a guerra. “Na verdade, nunca fui muito de assistir TV, mas  me parece que a guerra anda sumida do noticiário ultimamente. Agora só se fala  em eleição presidencial e debates entre candidatos. Só que não dá para saber o  que eles pensam mesmo; todos me soam parecidos. Pessoalmente, gosto de John McCain, porque ele sabe o que é uma guerra.” Senador republicano, McCain foi ferido em combate e preso pelos vietcongues. 

Travis já não toma nenhum medicamento contra dor e combate a seu modo o  formigamento- fantasma nos membros amputados – pensando em outra coisa.  “Para quem ainda tem uma perna, existe um truque com a mente que vi no  hospital”, ele diz. “O cara coloca um espelho entre as coxas, coça o pé existente e  fica com a impressão de que tem as duas pernas. Parece que funciona, mas não tenho como conferir.” 

Em sua dura reinserção na vida como amputado, ele ainda tentou um dos  programas mais dinâmicos à disposição de ex-combatentes: o esporte  paraolímpico. Foram seis meses de treinamento rigoroso, adaptação a cadeiras de  rodas para atletismo e experiências em outras modalidades. Constatou que não  seria seu caminho e se desligou, depois de uma viagem de reflexão ao Alasca. 

Decidiu, também, que as fenomenais próteses de tecnologia avançada, às quais  todo ex-combatente tem direito, não são para ele. Pelo menos, não nessa fase da  vida. Com elas, poderia atingir a altura de 1,82 metro, apenas 6 centímetros a  menos do que antes de Ramadi, mas “o toco que me resta é tão curto, que não  tenho apoio para movimentar as pernas mecânicas. Gasto energia demais quando me exercito e suo como um porco, pois tenho menos superfície de corpo  humano para ventilar o calor. Então, me canso além da conta. Para mim, a cadeira  de rodas é mais fácil”. 

Para aperfeiçoar próteses que possam ajudar mutilados como Travis, a Oficina de  Construçãode Encaixes do Walter Reed trabalha a pleno vapor. A sala, em forma  de L, assemelha-se de fato a uma oficina, com homens e mulheres de avental azul  que torneiam pedaços de membros artificiais, moldam folhas de plástico num  forno e manipulam peças de fibras de carbono, acrílico ou resina de epóxi. As  próteses propriamente ditas são importadas da Alemanha ou da Islândia e custam, em média, 25 mil dólares cada. 

Em janeiro do ano passado, um time de cinco profissionais chefiados pelo tenente  Joe Miller, protético no Centro de Treinamento Avançado, passou cinco meses em  Bagdá a fim de organizar uma clínica para protéticos, fisioterapeutas, terapeutas  ocupacionais e técnicos em próteses iraquianos. Instalaram-se na chamada Zona  Verde da capital, a cidadela dos ocupantes, e levaram o primeiro susto. Conta  Miller: “A protética no Iraque está no mesmo nível que a americana de 1956, e os centros existentes são chamados de ‘fábricas de pernas’“. Além disso, para ter  acesso à clínica, alunos e pacientes civis iraquianos tinham de se submeter a um  processo de revista e verificação de identidade que podia durar quatro horas. Em  alguns casos, se pode morrer apenas por isso – aproximar-se dos ocupantes americanos. “Perdemos alguns pacientes”, admite Miller. Para uma nação que não tem como contar seus mortos – o dado mais confiável, até agora, da  revista médica britânica Lancet, publicado em julho de 2006, fala em mais de 600  mil mortos –, os feridos e mutilados contam ainda menos. Tornaram-se parte da  paisagem de um país invadido onde a tecnologia de ponta do ocupante soa a  ficção. 

De fato, o leque de atividades promovidas pelas Forças Armadas americanas para  motivar seus ex-combatentes a se superar através da tecnologia é cintilante, e já  existem próteses para quem quer praticar esportes na neve, esqui aquático, fazer  caiaque ou jogar golfe. “Nosso serviço é muito visual em termos de itens disponíveis. Quando introduzimos um pé novo, por exemplo, todos logo querem um”, diz o tenente-protético Miller. No próprio ginásio ensolarado do Centro, um  altíssimo paredão de montanhismo, com superfície móvel para dificultar ainda  mais a escalada, é enfrentado com destemor por vários portadores de pernas  mecânicas. Tudo parece possível. 

Só não parece possível estancar as remessas de novos recrutas para a guerra. Em  abril próximo, dentro de quatro meses portanto, o Corpo de Fuzileiros Navais vai  despachar mais um contingente de soldados para o Iraque. Entre eles,  Christopher Greene, de 19 anos, o irmão caçula de Travis.