SOBRE
O PROJETO
DORRIT
HARAZIM
JOSÉ
HAMILTON
ROSENTAL
CALMON
JOEL
SILVEIRA
Joel Silveira

A paixão do repórter

"O repórter tem que ser humilde, olhar a notícia como um cristão de fé olha Deus. Com a maior reverência e humildade."

SOBRE Joel Silveira

Joel Silveira, que recebeu de Assis Chateaubriand o epíteto de “víbora”, considerava o repórter mais importante que o dono do jornal.

texto Elvira Lobato / edição Maiá Menezes / vídeo -

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O sergipano Joel Silveira foi tão apaixonado por reportagem que, sendo ateu, comparou a importância da notícia à de Deus: “O repórter tem que ser humilde, olhar a notícia como um cristão de fé olha Deus. Com a maior reverência e humildade. Não se discute com a notícia!”, disse ele no documentário “Garrafas ao Mar, a Víbora Manda Lembranças”, produzido por Geneton Moraes Neto (morto em 2016), de quem foi amigo por mais de 20 anos, e exibido pela TV Globo.  

Joel morreu em agosto de 2007, três meses depois de ter sido homenageado no 2º Congresso da Abraji. Não pôde comparecer à cerimônia, por estar muito debilitado, mas os jornalistas que lotavam o auditório se sentiram abraçados por ele quando declarou -no mini documentário gravado especialmente para a ocasião – que o repórter é mais importante do que o dono do jornal, por ser o responsável por buscar a notícia.

A hierarquia do jornal idealizada por ele teria o repórter no topo, seguido do papel, tinta, gráfica, editor, diretor de marketing (responsável pela receita publicitária) e do diretor financeiro, que paga os salários. O último em relevância seria o dono do jornal.  Seu universo foi o da imprensa escrita. Teve pouca afinidade com a internet, e morreu acreditando que ela não vai  matar o impresso. 

A trajetória profissional dele emociona pela ousadia e pela entrega sem limites à execução da pauta. A qualidade de seu texto foi reconhecida por Rachel de Queiroz, que comentou: “Que prosa o danado tem!. Até os que desanca se sentem de certa maneira lisonjeados”.

Parecia não ter freios nem autocensura diante de um tema desafiador.  Mostrou essa ousadia muito jovem, aos 26 anos, quando fez a reportagem – Os grã-finos em São Paulo- sobre a alta burguesia paulistana, que o catapultou imediatamente para a fama. O texto ácido e irônico, recheado com fotos de moças e rapazes da alta sociedade, foi publicado em novembro de 1943, pela revista carioca Diretrizes, de Samuel Wainer, e republicado na edição seguinte, tamanha sua repercussão. 

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A pauta nasceu de uma conversa com Di Cavalcanti, que lhe relatou seus dissabores com a sociedade paulistana. “Isso dá uma reportagem”, reagiu o jovem Silveira. Conseguiu se infiltrar nos clubes e cafés mais exclusivos e durante uma semana frequentou festas e jantares.  “(…) Fui de mistura com os outros, como penetra. Os rapazes se vestem muito bem e telefonam. Telefonam de cinco em cinco minutos e conversam com Lili, com Fifi e com Lelé. Recebem também telefonemas de Fifi, de Lili e de Lelé.” 

Esta reportagem entrou para a história do jornalismo porque juntou texto literário e informações objetivas, o que não era usual na imprensa de então. Não só descreveu o comportamento esnobe da elite, como identificou as famílias pelos sobrenomes (Lafer, Crespi, Matarazzo, Pignatari e outros) e quantificou o enriquecimento delas com cifras e  percentuais. 

“O lucro dos Matarazzo no ano passado foi de 700 milhões de cruzeiros e com ele podem fazer grandes e belas coisas. Algum dia, quem sabe, Matarazzo fará um refeitório ventilado e claro para seus operários. Os principais bancos paulistas reunidos somaram um lucro de Cr$ 123,26 milhões. E os bancos pertencem aos homens que são donos das fábricas”, dizia o texto.

Por que a reportagem teve tanto impacto?  Porque acontecia a Segunda Guerra Mundial. Os olhos da humanidade estavam voltados para as atrocidades cometidas por Hitler e seus aliados. A descrição da futilidade dos grã-finos era um tapa na cara do resto da sociedade. A revista explorou bem aquela contradição em um texto em negrito na primeira página, onde dizia que a elite industrial paulistana lucrava com a guerra.  O deboche começava no título: “Dos lucros de guerra nasce o esplendor da ‘haute gomme’ (sociedade elegante) paulista”. 

“De manhã cedo, os operários paulistas enchem os bondes e os trens suburbanos. Vem gente de todos os lados de São Paulo, gente que povoará o maior parque industrial da América do Sul. Esta é também a hora de Lili voltar para casa. Lili viveu outra de suas grandes e alegres noites. Lili é uma delicada flor paulista, como uma orquídea rara. Lili tem atrás de si quatrocentos anos de lutas, de sucessos, de alegrias e de decepções. Os antepassados de Lili fizeram várias coisas essencialmente paulistas: entraram pela mata adentro, descobriram rios, montanhas, florestas, fundaram cidades. Outros plantaram café, e ficaram ricos. Outros, mais recentes, construíram fábricas e se meteram em indústrias – ficaram ainda mais ricos. Lili é a última – e Lili não precisa fazer mais nada. Lili não ouve o barulho dos motores nem o apito das chaminés. Lili não entende de nada, é uma flor sem problemas nem angústias. Lili diz apenas: – Nunca tive uma vida social tão intensa. São Paulo está adorável”.

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Escriba no puteiro 

Joel Silveira nasceu em 1918 (final da Primeira Guerra Mundial) na cidade de Lagarto, no interior de Sergipe. Costumava dizer que era uma terra tão tinhosa que nem Lampião ousou invadi-la. Sua alma de repórter se manifestou precocemente. Aos 14 anos, começou a escrever para um jornal sindical chamado A Voz do Operário, de Aracaju. Um pouco mais tarde, ainda no segundo grau, tornou-se, segundo ele próprio “escriba oficial” de cartas no puteiro “Pinga-Tostão”.  Madame Sofia, dona do estabelecimento, lhe propôs redigir cartas para as jovens prostitutas analfabetas. A maioria delas era do interior e tinha sido tangida de casa pela miséria ou expulsa pelos pais severos por terem dado um “mau passo”. A experiência está citada no livro de memórias “Na Fogueira”, publicado pela editora Mauad em 1998, que ganhou Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras naquele ano.

“Mãezinha do meu coração, recebeu o dinheiro? Vou ver se no fim do mês mando mais um pouquinho”. A pena rangia no papel almaço ou no de seda, as cartas iam se empilhando, pequena montanha de falsas alegrias, queixumes contidos, felicidade faz-de-conta”, diz ele no livro. A convivência com as prostitutas certamente contribuiu para sua preocupação com as desigualdades sociais.

Aos 19 anos, Joel mudou-se para o Rio de Janeiro para estudar direito, o qual, diga-se, abandonou no segundo ano, em prol do jornalismo. Chegou com um pouco de dinheiro que o pai lhe dera e com uma carta de recomendação, com os garranchos e assinatura de um coronel político amigo da família. A carta não surtiu efeito. Conseguiu o primeiro trabalho, no semanário Dom Casmurro, sem apadrinhamento. Fez um texto, foi até a sede do jornal, e pediu ao porteiro para entregar o envelope ao chefe da redação. O material foi publicado e pouco tempo depois ele foi admitido como redator.

O historiador Danilo Wenseslau Ferrari, que estudou a atuação de Joel na imprensa carioca entre os anos de 1937 e 44, considera que a primeira reportagem de fato dele foi ‘‘24 Horas na Vida de uma Datilógrafa”, publicada em abril de 1940 , como colaboração, na revista Diretrizes. Até então, ele publicara basicamente crônicas e notícias cotidianas. Em dezembro daquele ano, Diretrizes passou de mensal a semanal e precisou reforçar a mão-de-obra. Joel deixou a Dom Casmurro e se incorporou à equipe da Samuel Wainer, onde acumulou as funções de repórter e de secretário de redação. O tema predominante das reportagens dele naquele período, por óbvio, era a guerra e seus impactos no Brasil. 

Embora ocupasse o segundo cargo na hierarquia da redação – só abaixo de Samuel Weiner, que era o diretor- Joel saía para as ruas à cata de seus personagens, como na reportagem sobre a luta de uma dona de casa do Méier (bairro de classe média baixa da Zona Norte do Rio) contra o aumento dos preços nos armazéns do bairro, publicada em fevereiro de 1943.  “A guerra está em toda a parte. Sobre a neve russa e no armazém Esperança, no Meier”, dizia o texto.

Diretrizes fechou em junho de 44, quando o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda, da ditadura Vargas) cortou seu suprimento de papel. Com o fechamento, Weiner foi para o exílio e Silveira buscou guarida em Sergipe.

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A Víbora

Assis Chateaubriand então o convidou para integrar o time de estrelas dos Diários Associados, onde já brilhavam Carlos Lacerda, Davi Nasser  e Edmar Morel. No momento do convite, o apelidou de “Víbora”. O rótulo colou, a contragosto dele.  “Não sou víbora. Não ataco. Não chamo minguem de ladrão, mas Chatô encasquetou que eu era víbora, e ficou”, queixou-se em uma entrevista.

Vinte dias depois de contratá-lo, Chateaubriand o escolheu para ser o correspondente junto à  FEB (Força Expedicionária Brasileira), e ele foi para o campo de batalha com os pracinhas. Seu concorrente direto na cobertura da Segunda Guerra Mundial foi ninguém menos que Rubem Braga, pelo Diário Carioca. A guerra o marcou profundamente. Dizia que saiu do país com 27 anos e voltou onze meses depois com 40 anos. “Perdi a ingenuidade. A guerra é terrível”. O que mais o impressionou foi o cheiro: “uma mistura de sangue e diesel”.  A visão de Mussolini pendurado, morto, em Milão, ficou em sua retina.

As reportagens dos correspondentes passavam pela censura do governo antes de serem publicadas. Um dos textos mais emblemáticos sobre o que viu nos campos de batalha foi a reportagem “Eu vi Morrer o sargento Wolf”:

“Vi perfeitamente quando a rajada de metralhadora rasgou o peito do sargento Max Wolf Júnior. Instintivamente, ele juntou as mãos sobre o ventre e caiu de bruços. Não se mexeu mais.(…) Menos de uma hora antes eu estivera conversando com o sargento. Creio que foi a mim que fez suas últimas confidências. Falou-me de sua filha, uma menina de 10 anos de idade, que ficou no Brasil. Disse-me que era viúvo e deu-me notícia de que sua Promoção a segundo tenente, por ato de bravura, não tardaria a chegar. E como eu estava recolhendo mensagens entre os homens do seu pelotão de choque, já formados para a patrulha de minutos depois, o sargento Max Wolf pediu-me que também enviasse uma sua. Estão comigo as poucas linhas que sua letra delicada e certa escreveu no meu caderno de notas: aos parentes e amigos. Estou bem. À minha querida filhinha – papai vai bem e voltará breve”.

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Grã-finos, de Novo

Ele mal tinha voltado da guerra quando foi designado para cobrir o casamento da filha do conde Francisco Matarazzo, o maior industrial de São Paulo. Nada seria ameno na cobertura. Chatô e o conde estavam em guerra por um motivo banal: o atraso no pagamento de aluguel de um imóvel pelos Associados. Chatô atacou o conde em seus jornais e o chamava de “Al Capone”. Em revide, o conde comprou parte do capital da Folha da Manhã (que mais tarde seria adquirida pela família Frias) e baixou os preços, prejudicando os demais jornais.  O casamento de sua filha Filomena com o milionário carioca João Lage se deu neste contexto. 

A reportagem “A 1002ª Noite da Avenida Paulista “ está reproduzida em vários livros do autor. Ela descreve detalhes da festança: 26 jantares, oito recepções, 100 seguranças particulares contratados, 400 apartamentos reservados nos melhores hotéis, bailarinas e orquestra sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, canetas folheadas a ouro distribuídas entre os convidados. O repórter não conseguiu se infiltrar nas festas, mas foi abastecido por informantes. Quando Silveira redigia o texto, uma mulher adentrou a redação do Diário de São Paulo (também de Chatô) e propôs que cobrissem o casamento de sua filha. A noiva e o noivo eram funcionários de Matarazzo. Joel não perdeu a oportunidade de contrastar a opulência do patrão com a modéstia dos operários. 

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O menino morto

Joel tem textos de grande sensibilidade e doçura.  Essa faceta foi mostrada na cobertura da revolta popular em Bogotá, em abril de 1948. Ele trabalhava para O Diário de Noticias, do Rio de Janeiro, e foi enviado à Colômbia para a IX Conferência Panamericana. Durante o evento, o líder político Jorge Gaitán foi assassinado a tiros na rua. O assassino foi linchado por uma multidão em fúria. A rebelião perdurou por dias e deixou centenas de mortos e de feridos.

Silveira foi ao cemitério central de Bogotá para ter uma ideia aproximada do saldo de mortos. Viu fileiras de corpos arrumados como se estivessem em dormitórios coletivos e escreveu: “Nunca, em toda a minha vida, nem mesmo nos meses de guerra, estive diante de mortos tão mortos”, e viu o corpo de um menino que parecia sorrir e mirar algo que só ele via.

 “Somente aquele menino (não mais de oito anos) morrera cândido, de olhos abertos, um começo de sorriso nos lábios. Os olhos vazios fixavam o céu de chumbo, e as mãos de unhas sujas e compridas pendiam sobre a laje dura – como remos inertes de um pequeno barco (….).  Abertos e limpos, os olhos do menino morto pareciam maravilhados com o que somente eles viam, com o que queriam ver para sempre”.

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Sucessos e Fracassos

Silveira conheceu Getúlio Vargas, João Goulart, Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros e escreveu reportagens reveladoras sobre eles. Entrevistou autoridades religiosas e ex-integrantes do bando de Lampião. Gabava-se de seus acertos, mas não escondia os fiascos, como a fracassada tentativa de entrevistar o escritor norte-americano Ernest Hemingway, em 1952. Ele estava em Paris, pelo jornal Última Hora, de Samuel Wainer. Soube que Hemingway estava na cidade e que batia pontos todos os dias em um certo bistrô.  Chegou mais cedo no local e ficou bebendo à espera dele. “Às 11h em ponto, ele entra, aquela montanha de homem, quase dois metros de altura(…) Ingeri mais um conhaque. Fui ao banheiro e voltei para fazer as perguntas. Quando cheguei, ele tinha ido embora”. 

Joel Silveira dedicou a maior parte de sua vida profissional aos jornais, mas também passou pelo serviço público. Foi secretário de Cultura de Sergipe, no governo de Antonio Carlos Valadares (1987-91). Há uma ponte em Aracaju com o nome dele. Joel foi preso cinco vezes durante a ditadura militar. “Eu os amolava e eles me prendiam. Me soltaram e eu voltava a amolá-los”, disse, referindo-se aos militares. Foi preso pelo Exército, pela Marinha e pela Aeronáutica, e dividiu cela com Carlos Heitor Cony. 

Certa vez, um repórter pediu a ele para definir sua vida. A resposta resumiu sua paixão sem limites pela reportagem:

“Eu vi a banda passar. Quantas bandas passaram diante da minha janela. A função do repórter é ver a banda passar. Não é fazer parte dela”. Sua vasta produção jornalística pode ser vista nos livros de memórias, como “Tempo de Contar”(Ed. José. Olympio), “Na Fogueira”(Ed. Mauad), “A Feijoada que derrubou o governo”(Cia das Letras), “As Grandes Reportagens de Joel Silveira”(Codecri) e outros. Foram 40 livros no total.

Leia, a seguir, três reportagens selecionadas do livro “As Grandes Reportagens de Joel Silveira”, editado pela Codecri (1980). A Abraji agradece ao editor Jaguar a autorização de reprodução dos textos, sem fins lucrativos. 

Não sou víbora. Não ataco. Não chamo ninguém de ladrão, mas Chatô encasquetou que eu era víbora, e ficou.
Não sou víbora. Não ataco. Não chamo ninguém de ladrão, mas Chatô encasquetou que eu era víbora, e ficou.
Joel Silveira
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